Com poucos bens declarados — ou até sem qualquer um —, cidadãos de profissões como donos de casa, vigilantes, motoristas de aplicativo, cabeleireiros, entregadores, líderes comunitários e engraxates querem o voto dos brasilienses nas urnas, em outubro. Eles entram na disputa eleitoral contra postulantes com rendas maiores e ocupações mais comuns entre os candidatos pelo Distrito Federal neste ano: advogados, servidores públicos e empresários. Levantamento do Correio com base nas informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aponta que, ao menos, 74 nomes concorrem sem muitos recursos financeiros. Todos buscam uma chance no Legislativo, e a maioria (56) pleiteia uma vaga na Câmara local.
Quase metade dos 74 candidatos (46,5%) não declararam qualquer bem à Justiça Eleitoral (leia Confirmação de dados), enquanto 21,5% registraram patrimônios entre R$ 101 mil e R$ 250 mil. Advogados e empresários chegaram a listar valores maiores, de R$ 9 milhões a R$ 72 milhões. Apesar da abrangência de categorias profissionais no pleito, a renda dos candidatos não costuma determinar o voto dos eleitores, segundo Ricardo Amado, especialista em marketing político, planejamento estratégico e coordenação de campanhas políticas. "A tendência é escolher quem acene com soluções para as demandas (do eleitorado). Pode-se votar em quem teve a mesma origem e conheça problemas (da população), que tenha demonstrado capacidade de superação e apresente ofertas de melhoria de vida para as pessoas", avalia.
Mesmo assim, a discrepância de condições não desanimou os cidadãos interessados em ocupar um cargo eletivo. Eles se apoiam nas comunidades de onde vêm e nas categorias das quais fazem parte.
As regiões administrativas onde moram e as classes profissionais são alguns dos principais motivos que os levaram a ingressar na política, segundo candidatos ouvidos pela reportagem. Eles mencionam o desejo de suprir a falta de atenção recebida pelas cidades em que habitam — muitas vezes, periféricas — e de fortalecer a luta pelos direitos das categorias a que pertencem, frequentemente deixadas de lado. É o caso de Joab Santa Luzia (Avante), Junior Capão Comprido (Avante), Scooby Ube (PSC) e Sonic Motoboy (PDT), que tentam uma das 24 cadeiras da Câmara Legislativa.
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Intenções
Motorista de aplicativo, Scooby Ube, com poucos recursos, afirma que conta com o apoio dos colegas de profissão. "Eles têm me ajudado nos grupos de WhatsApp, onde as informações se espalham rapidamente. Isso acontece de forma voluntária. É uma campanha simples, pelas mídias sociais. Para todos os passageiros que pego, conto que sou candidato, que represento a categoria e que luto há muito tempo pela causa (dos trabalhadores de app)", detalha.
No caso do tapeceiro e morador da Estrutural Joab Santa Luzia, as estratégias envolvem a própria região administrativa: "Queremos eleger alguém dali e possibilitar que se mude a situação que vivemos, pois os políticos que estão lá (na Câmara Legislativa) não olham para nossa RA. Tenho recebido muito apoio de outras pessoas fazendo campanha no corpo a corpo. E, como não temos recursos para ir a outras cidades, foco muito na minha para falar à população, com uma equipe de voluntários que vai às ruas".
Já o interesse de Junior Capão Comprido na vida política surgiu após o trabalho como líder na comunidade de São Sebastião, onde mora. "Voluntários têm participado da campanha e conversado (com os moradores) no boca a boca. Essa é a realidade do candidato que não tem dinheiro. Mas lutamos com muita força, porque sempre trabalhamos para levar melhorias para (as regiões do) Capão Comprido, Zumbi dos Palmares e outras esquecidas. Assim, continuamos a mostrar nossa vontade de trabalhar e de trazer atenção à nossa cidade", comenta.
Sonic Motoboy ressalta que luta para representar essa classe profissional no Legislativo. As iniciativas de divulgação da candidatura envolvem, principalmente, o contato direto com o eleitorado. "Quando encontro outro motoboy, paro para conversar. Tenho adesivos (de campanha) que fiz por conta própria. Infelizmente, nossa categoria não tem voz lá dentro (da Câmara Legislativa), e sofremos muito preconceito na rua. Precisamos ter essa representatividade e temos tentado espaço nos grupos, entre os amigos e assim vai", diz.
"Chão de fábrica"
A concentração das decisões partidárias nas mãos de poucos nomes, conhecida tecnicamente como "oligarquização" das legendas, pode dificultar a carreira política de quem não tem tradição nas siglas. É o que observa André César, cientista político da Hold Assessoria Legislativa. "Os partidos são uma estrutura como uma empresa, com cargos da cúpula, elites e 'o chão de fábrica'. E isso fica muito claro em um processo eleitoral. Há as lideranças, as celebridades e, lá embaixo, o pessoal desses grupos 'normais'", analisa.
Para o especialista, nomes mais conhecidos tendem a ser priorizados pelos partidos. "No Brasil, desenvolveu-se, a partir de um certo momento — e é difícil precisar quando —, a candidatura de celebridades que se elegem com votações espantosas e 'puxam' muita gente. As legendas adoram isso. Por outro lado, há essas candidaturas de pessoas com profissões comuns, que podem buscar nichos específicos. Em minha avaliação, isso é pouco produtivo. As siglas, em geral, dão mais espaço e recursos para as lideranças, bem como para parlamentares com mandato. O pessoal (com menos bens) entra só para formar uma base", pondera André César.
Isso não significa, contudo, que a aposta dos partidos em candidatos com poucos recursos financeiros não seja genuína. "No cálculo de uma eleição, todo voto é importante. Ainda mais em um sistema multipartidário, com mais de 30 legendas. A disputa é por voto. Qualquer um a mais pode fazer a diferença. Nesse sentido, conquistar os motoboys, por exemplo, é uma boa estratégia, porque essa é uma categoria que cresce. E não só o motoboy, mas a família, os amigos e a comunidade dele", completa o cientista político.
Professor da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em ciência política, Lúcio Rennó avalia os riscos envolvidos em uma candidatura: "Quem tem uma renda mais baixa, ao passar pelo caminho da política, tem de construir uma carreira em um partido, o que pode representar possíveis ganhos financeiros no futuro, mas essa não é a principal motivação. O custo de se engajar na vida pública, de investir energia e tempo nela é muito alto. No caso de candidatos ricos, não será o dinheiro que fará a diferença, são as outras motivações, como (assumir) cargos com implicações futuras, a carreira, transitar no poder público. Mas as duas categorias (de postulantes) podem se incentivar, obviamente, pelo desejo de fazer algo pela população", salienta.
Confirmação de dados
A Lei nº 9.504/1997 não define critérios específicos para a declaração de bens, mas define a necessidade de inclusão desse documento no processo de candidatura. Na Justiça Eleitoral, o entendimento tem sido de que esse registro é autossuficiente e, por isso, não há dever legal dos tribunais de confirmar ou verificar a propriedade dos recursos informados pelos candidatos. No entanto, o Ministério Público, os partidos e demais postulantes a cargos eletivos podem contestar esses dados por meio de representação judicial.
A produção desta reportagem usou recursos da ferramenta Pinpoint, do Google. Confira a coleção de arquivos analisados.