No fim da década de 1960, me mudei de Brasília para São Paulo, pois meu pai era pastor presbiteriano e, a cada quatro anos, cumpria missão evangélica em uma cidade diferente. Certo dia, ouvi uma canção estranha no rádio, que caiu em minha cabeça como um disco voador, um objeto não identificado. Era Tropicália, de Caetano Veloso.
Eu estava acostumado com canções que contam uma história com começo, meio e fim. A narrativa de Caetano se estilhaçava, fazia uma colagem absurda, misturava cinturão com abacate, como diria o poeta Zé Limeira. Senti-me como se ouvisse uma língua desconhecida e, mas, estranhamente familiar.
No entanto, de repente, tive uma intuição e lembrei que, em Brasília, meu pai me levava para os desfiles militares na Esplanada dos Ministérios, no meio do descampado, sob as nuvens de poeira, com caminhões do Exército na terra vermelha e aviões da Aeronáutica riscando o céu em malabarismos.
Claro que a canção não era apenas sobre Brasília, mas Brasília era uma senha que me permitiu entrar no claro enigma de Tropicália: "Sob a cabeça os aviões/Sobre meus pés os caminhões/Aponta contra os chapadões/Meu nariz/Eu organizo o movimento/Eu oriento o carnaval/Eu inauguro o monumento no Planalto Central do país".
Tropicália se desdobra como o desfile alegórico de uma escola de samba na Sapucaí. Só que é um samba-exaltação minado de ironia trágica e de nonsense. A utopia-Brasília não escapa da realidade do Brasil: "O monumento não tem porta/A entrada é uma rua estreita e torta/E no joelho uma criança/Sorridente feia e morta estende a mão".
Eu tinha 14 anos, mas Caetano continuou a compor canções inspiradas e a fazer a trilha sonora da minha vida. Se tivesse colocado música em meu casamento seria com Terra, que Juçara e eu colocávamos na então vitrola até furar o disco quando começamos a namorar. Ela é capricorniana, signo da terra, e achava que a música havia sido feita para ela: "Eu estou apaixonado por uma menina terra/Terra para os pés firmeza/Terra para a mão carícia/Outros astros lhe são guia..."
Diferentemente do que se possa imaginar, Caetano não usa nenhum aditivo químico e chega a ser chamado pelos amigos de Caretano. E, realmente, não precisa. Caetano é lisérgico pela própria natureza. Compõe melodias celestiais e escreve letras com e qualidade para emparelhar com os grandes poetas da língua portuguesa. Ele é o falso preguiçoso, reserva o trabalho, o empenho, o esmero e a perfeição para a sua arte: "Choque entre o azul e a luz das acácias/Brilho de acácias/Você é mãe do sol".
Certa vez, entrevistei Luiz Melodia na redação do Correio. Perguntei se a fragmentação das letras das canções dele era influência do movimento tropicalista. Ele se sentiu humilhado e ofendido e disse que não tinha nada a ver. Achei a resposta tão infantil, pueril e tola que não me animei sequer a replicar e me desinteressei completamente pela música dele. Como era muito opiniúdo, nunca quis entrevistar Caetano Veloso, com medo de estragar uma das trilhas sonoras de minha vida. Não sou tiete, sou um admirador férvido, mas crítico.
Caetano faz hoje 80 anos, vamos reverenciá-lo, pois, como disse Cartola, quem gosta de homenagem depois de morto é estátua. É um privilégio sermos contemporâneos de um artista tão genial quanto Caetano Veloso. Nos tempos em que alguns tanto nos envergonham, Caetano nos faz sentir orgulho de sermos brasileiros.
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