Histórias de Glauber

Correio Braziliense
postado em 03/08/2022 00:01

Todos que chegaram perto de Glauber Rocha têm uma história fantástica para contar. Ele é um dos mais fascinantes personagens da cultura brasileira. Glauber, esse vulcão, de João Carlos Martins, é a melhor, mais rigorosa e completa biografia sobre ele. Mas, no afã de evitar a aura de loucura e revelar a verdadeira contribuição intelectual de Glauber, Martins realizou uma obra um tanto árida.

Li, recentemente, A primavera do dragão, de Neson Motta, que envereda pelo caminho oposto ao de Martins: o anedotário em torno de Glauber. Há muitas imprecisões. Motta escreve, por exemplo, que o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil era editado pelo poeta e crítico Mário Faustino. Errado. Quem concebeu e dirigiu o SDJB foi Reynaldo Jardim.

Seria talvez necessária uma biografia que sintetizasse a contribuição intelectual de Glauber e a sua grandeza humana. Apesar disso, Motta conta boas histórias, reveladoras do caráter, das obsessões e da alma do personagem. Evocarei duas delas.

Certa noite, Glauber e a trupe de amigos da adolescência baiana aprontaram a maior confusão em um bar e foram levados à delegacia para prestarem depoimento. O escrivão pediu que eles se identificassem. Glauber se autonomeou: "Carlos Drummond de Andrade". Outro amigo se apresentou: "Pablo Neruda". E um terceiro pontificou: "Mario de Andrade". Ao ler o depoimento, o delegado de plantão, que tinha algumas fumaças literárias, caiu na gargalhada, deu uma tremenda bronca e mandou todo mundo embora.

E a segunda. Nos tempos de adolescência, Glauber fazia marcação cerrada sobre os candidatos a paquerar a sua belíssima irmão Anecy. Ela estava namorando Caetano Veloso em casa, quando ouviram o barulho de alguém chegando. Os dois ficaram aflitos. Caetano indagou: "É seu pai?" E Anecy respondeu assustada: "Não, pior ainda, é Glauber". No desespero, Anecy inventou, desajeitada, algo para se safar: "É um amigo meu, gay".

Nos tempos em que passou por Brasília, no fim da década de 1970, Glauber concedeu entrevista a três amigos: Celso Araújo, Éclison Tito e Milton Guran. Logo na primeira pergunta, feita por Celso, sobre o que era o novo filme, A Idade da Terra, Glauber destemperou e fez um discurso de meia hora sobre a decadência do jornalismo cultural, mas respondeu perfeitamente à indagação.

O baiano Tito é uma das pessoas mais inteligentes que conheci. Tomou as dores e Glauber partiu para o ataque: "Olha, vou te psicanalizar: você é negro, subdesenvolvido e vou te dar uma porrada". Tito replicou: "A sua análise é pre-lacaniana". Glauber trepicou: "Eu sou o próprio fluxo do inconsciente".

Durante a entrevista, Glauber puxou o fio que ligava o gravador à tomada, aprontou e irritou. Celso, Tito e Guran descreveram tudo, mas respeitavam muito a Glauber, fizeram uma matéria correta e elogiosa, sob o titulo "Glauber em êxtase". Satisfeitíssimo, Glauber comentou com o amigo brasiliense Fernando Lemos: "Não entendi nada, esculhambei com os caras e eles botaram esse título".

O resultado é que ficou amicíssimo do Tito. Logo que chega a Brasília ligava e ordenava: "Tito, você precisa fazer cinema. É a síntese das artes e do jornalismo". Quer dizer, sua provocação era um teste para saber até que ponto poderia confiar em determinadas pessoas. Havia razão na aparente loucura de Glauber.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação