Miséria, dor, desesperança... A reportagem do Correio percorreu regiões de extrema pobreza perto do centro do poder e conviveu com a rotina de pessoas que lutam diariamente pela sobrevivência — sofrendo, muitas vezes, por não terem o que comer —, ouviu especialistas sobre a importância dos programas de transferência de renda e presenciou a solidariedade entre vizinhos, o movimento de igrejas, voluntários e organizações não governamentais tentando ocupar espaços deixados pelo poder público.
O último relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), divulgado na quarta-feira, mostra uma piora no quadro da fome no Brasil. Entre 2019 e 2021, 61,3 milhões de brasileiros enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar, dos quais 15,4 milhões de forma grave. No período de 2014 a 2016, 37,5 milhões de pessoas foram atingidas, sendo que 3,9 milhões delas se encontravam em piores condições. Situação que se repete no Distrito Federal. Levantamento da Companhia de Planejamento (Codeplan) também apontou que a população pobre do DF cresceu de 12,9% para 20,8% entre 2019 e 2021. São aproximadamente 600 mil pessoas vivendo com até R$ 450 por mês.
Ao longo das últimas seis décadas, uma multidão de excluídos foi se instalando nos arredores de Brasília. São desempregados, trabalhadores informais e pessoas com baixas remunerações formando um verdadeiro cinturão de pobreza a orbitar o projeto de cidade imaginada pelo urbanista Lucio Costa.
Durante uma semana, a reportagem escutou relatos de quem vive em situação precária — em barracos sem água encanada e rede de esgoto, onde serviços essenciais que deveriam ser oferecidos pelo Estado chegam a conta gotas, quando chegam. Cenas de pobreza e até miséria a menos de 10km da Praça dos Três Poderes e do Palácio do Buriti.
Sem ter acesso à ajuda do CRAS
São aproximadamente 11h, quando a equipe do Correio chega à casa de Maria Ribeiro, 43 anos, no bairro Santa Luzia, da Estrutural: um barraco de madeira, com sala, quarto, cozinha e um banheiro precário com fossa séptica. Até aquele horário, Maria não tinha nada na geladeira para matar a fome dela, porque o sustento dos filhos no dia estava garantido. O mais velho, Ítalo, de 14 anos, almoça e merenda na escola que estuda e a pequena Agatha, de 6 meses, ainda mama no peito. Desempregada, Maria passa o dia rogando a Deus, ouvindo músicas religiosas em uma caixa de som instalada na cozinha. “Às vezes não tem nada pra comer, como hoje, e vem uma doação da igreja. Deus ajuda”, diz.
Maria é mãe solo, cria os filhos sozinha. Também não recebe nenhum benefício do governo. Diz que não pode passar a noite na fila para conseguir ajuda. “Ainda mais com a bebê nesse frio”, acrescenta, se referindo às filas de pessoas que passam a noite à porta das unidades Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para aquisição ou renovação de cadastros.
Quando não chegam alimentos doados por voluntários, ela conta que os vizinhos vão ao seu socorro. “Aqui as pessoas se ajudam”. A água, os moradores do bairro têm que buscar em baldes no chafariz que é abastecido pelo caminhão pipa. “Busco (água) duas vezes por dia para cozinhar, tomar banho, beber, tudo”.
A moradora relata que há quase um ano, apenas um enfermeiro está atendendo no posto de saúde da Estrutural e no colégio onde o filho estuda — no Centro Educacional 1 — a polícia frequentemente revista as mochilas dos alunos e apreende drogas e armas. “Tem muita briga”, diz a mãe, evocando novamente Deus para que o filho volte vivo todos os dias para casa.
Um problema de dislexia foi um dos motivos para Maria encerrar os estudos, quando estava no 6º ano; além da necessidade de arrumar trabalho e se sustentar. “Eu sei escrever o meu nome”, conta, e emenda que sempre aconselha o filho: “Estuda, porque só o estudo pode te levar para onde eu não fui”. “Ele é um dos primeiros da sala”, orgulha-se a mãe.
A caçula, Ágatha, nasceu com um pezinho torto, precisou passar por uma cirurgia aos 2 meses, e Maria tem que levá-la com frequência ao Hospital Sarah Kubitschek. “Os médicos falaram que ela tem que ir lá até fazer 7 anos”, explica. As passagem de ônibus para chegar ao Plano Piloto, ela consegue com a irmã ou com algum vizinho.
Doações
Em um outro barraco do mesmo bairro, Cláudia Tavares Costa, 48, mora com o marido, a filha e uma neta. Todos os adultos estão desempregados. A filha, Érica, faz bico como manicure, e o marido é um “faz-tudo”. A casa, de madeirite, tem dois quartos, uma cozinha e um compartimento com fossa. A água, Cláudia busca em um cano que chega “mais ou menos perto” da casa dela.
Sem emprego há três anos, Cláudia recebe R$ 400 de benefício que, juntados aos bicos do marido e da filha, garante a sobrevivência da família. Aqui a gente só come carne e mistura (legumes) quando vem gente trazer ou o marido traz da rua”, diz. Ela abre a geladeira e mostra os pés de galinha que restaram da última doação.
Cláudia estudou até o 5º ano do ensino fundamental e trabalha desde os 13 anos. “Fui babá e fiz de tudo um pouco, mas, na época, não tinha essa de assinar a carteira”. A moradora de Santa Luzia conta que sofre de depressão desde que se entende por gente. A medicação para a doença, ela consegue nos Centros de Atenção Psicossocial (Capes), às vezes. “Quando eu não consigo, eu pego com a vizinha, depois ela pega comigo e assim vai”.
Conseguir atendimento médico é uma das maiores dificuldades enfrentadas por Cláudia. Com um inchaço no pescoço, ela espera há dois meses para ser atendida no Hospital Regional do Guará. Com os exames já feitos em mãos, a desempregada reclama da demora: “Não tenho ânimo para fazer nada, só quero ficar deitada, e olha que eu sou trabalhadeira”.
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"Pessoas não respeitam a gente"
No Sol Nascente/Pôr do Sol, o terreno baldio é o único lugar em que Jorge Castro Silva, 77, se sente seguro para fazer as caminhadas recomendadas pelo médico. Em meio a sacos de lixo, muita poeira e alguns urubus, o aposentado precisa se apoiar em uma bengala para andar, por causa das dores que sente na região da bacia. Ele conta que caiu quatro vezes na rua, com o desequilíbrio do corpo. "As pessoas não respeitam a idade da gente, passam com pressa derrubando tudo que está na frente".
Seu Jorge concluiu o curso de técnico em eletrônica em 1968 e, de lá pra cá, exerceu a profissão em cidades mineiras e goianas, além de Brasília. Trabalho que lhe garantiu o piso da aposentadoria (R$ 1.212) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas uma parte desse dinheiro está comprometida. "Fiz um empréstimo que me toma R$ 400 por mês até 2025", calcula. Com restante, ele paga o aluguel da casa onde mora sozinho (R$ 400) e se alimenta com o restante. "Às vezes a filha ajuda um pouco", completa.
O nome de seu Jorge não consta nos cadastros dos programas de transferência de renda. As medicações para tratar o diabetes e a hipertensão, o aposentado pega no postinho de saúde, e sua maior queixa é com a falta de atendimento médico na rede pública de saúde. "Estou esperando há meses uma consulta com um médico de Ceilândia para ver essa dor na bacia e nunca tem", reclama.
Anacleto de Castro Pereira, 58, deixou de trabalhar há quatro anos como ajudante de pedreiro para catar e vender lixo reciclável. Sem estudo (ele não sabe assinar o próprio nome), nem tenta um emprego com carteira assinada, porque no último trabalho o patrão não pagava o salário. Sem contar com ajuda do governo, o catador diz que chega a faturar R$ 1.500 e R$ 2.000 ao mês com os reciclados. "Depende muito da sorte de achar coisa de valor", destaca.
Empurrando o carrinho com papelão, plástico e ferro velho, ele anda do Sol Nascente ao Pôr do Sol (os moradores ainda fazem a distinção entre os dois lugares) todos os dias. Nos intervalos em que permite um pouco de lazer, ele para em um boteco para tomar uma dose da "branquinha". "Ajuda a arribar, a aguentar, ora!", diz.
O catador se enche de orgulho ao contar que conseguiu construir uma casa de tijolos onde vive a família do filho — em uma parte do imóvel, ele aluga. "Cada centavo que sobrava do dia eu comprava em cimento", lembra.
Com a esposa, Francisca Granjeiro dos Santos, Anacleto mantém um casamento que dura 40 anos. Juntos tiveram seis filhos, 15 netos e um bisneto, que o bisavô ajuda a criar. "Eu quero que ele estude, suba 'pra riba'. Não quero que tenha a vida que eu tive", espera.
Em Sol Nascente e Pôr do Sol, por exemplo, as casas se expandiram a tal ponto de desaparecer a fronteira, fazendo com que o governo do Distrito Federal, em 2019, unisse as duas regiões. Com isso, o Distrito Federal tomou o primeiro lugar do Rio de Janeiro no ranking das maiores favelas do país. De acordo com a Codeplan, juntas, Sol Nascente e Pôr do Sol contam com 93.217 moradores.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira