Entrevista

Cinco juízas impõem a lei no combate às drogas no DF

As juízas Ana Letícia Santini, Joelci Diniz, Léa Ciarlini, Mônica Ianinni, Rejane Suxberger são titulares das cinco varas de entorpecentes do DF e se reuniram para conceder uma entrevista ao Correio

Todos as denúncias de tráfico de drogas do Distrito Federal são julgadas por cinco mulheres corajosas e preparadas para uma missão complexa. As juízas Mônica Ianinni, Léa Ciarlini, Joelci Diniz, Ana Letícia Santini e Rejane Suxberger são titulares das cinco varas de entorpecentes do DF. Estão à frente do desafio de dar uma resposta à sociedade diante de um problema grave que atinge a esfera da segurança e da saúde públicas.

Analisar casos de tráfico demanda uma avaliação muitas vezes de uma rede de ilícitos, como organização criminosa, roubo, homicídios, lavagem de dinheiro e violência doméstica. E o DF ocupa uma posição relevante nesse contexto.

Só nos primeiros seis meses deste ano, ocorreram 1.504 prisões em flagrante, com projeção de 3.857 presos para o ano. Pela posição estratégica, a capital está na quarta colocação no ranking nacional de tráfico de drogas do país, atrás apenas de São Paulo, Minas Gerais e Ceará.

As cinco juízas se reuniram para conceder uma entrevista ao Correio. Afinadas na disposição de trabalho, elas dizem que as apreensões têm aumentado, assim como o consumo o consumo. Um estudo apontou crescimento de 17,2% no uso de maconha e 7,4% de cocaína, além de 12,7% de benzodiazepínicos, como o diazepam, medicamento ansiolítico.

Nessa entrevista ao Correio, as juízas explicam que antes de discutir a descriminalização das drogas — que não deve estar relacionada à questão ideológica —, é preciso avaliar se o país está preparado para as questões de saúde pública relacionadas ao consumo e à fiscalização das regras.

E, a pedido do Correio, eles dão um conselho a pais que temem ver os filhos mergulhados no vício: “Questione sempre e muito seu filho. Peque por excesso de atenção”. E advertem: “A droga não está longe de casa, ao contrário, está com o melhor amigo, nas festas, próxima à porta da escola”.

Minervino Júnior/CB/D.A.Press - 01/07/2022. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Mulheres no combate ao Tráfico de drogas. Juízas do TJDFT. Rejane Suxberger( loira), Léa Martins Sales Ciarlini(blaser preto cam branca), Ana Letícia Santini, Joelci Diniz(vermelho) e MÎnica Ianinni(cam branca calça vermelha).

Cinco juízas nas varas de entorpecentes do DF. Foi uma coincidência ou alguma estratégia do TJDFT?

Coincidência. Fomos removidas para as varas por meio de concurso de remoção, com atendimento de requisitos objetivos, dentre os quais a antiguidade. Somos quase todas de concursos diversos com ingressos na carreira em anos distintos e remoções também em anos diferentes.

Vivemos numa sociedade machista. Uma juíza ainda tem a autoridade confrontada durante as audiências?

Todas nós já tivemos, em alguma oportunidade, uma história de desconforto nas salas de audiência. É preciso lembrar que, desde 1609, o Brasil conta com um sistema judiciário, composto de tribunais, juízes e desembargadores. A entrada de mulheres na instituição só se iniciou nos últimos 30 anos e, de maneira mais sistemática, somente nos últimos 20 anos. É um acontecimento muito novo, cujos impactos ainda estão sendo percebidos. Pensar a feminização dos tribunais é pensar a alteração de um statusquo patriarcal.

As mulheres são mais rigorosas ou mais emocionais? Ou a forma de julgar não tem relação com gênero?

O julgamento decorre de uma análise técnica, com base nas provas que são produzidas ao longo da persecução penal, de modo que há distanciamento entre as próprias emoções e o resultado do trabalho do julgador. O julgamento não decorre da emoção ou das concepções que o juiz(a) tem a respeito do crime ou do réu.

As senhoras têm percebido aumento nos crimes de tráfico?

É difícil abordar o tráfico de drogas no Brasil a partir de percepções de aumento ou redução. O que se pode dizer é que, no Distrito Federal, as apreensões de drogas aumentaram. Nos primeiros seis meses do ano, ocorreram 1.504 prisões em flagrante, com projeção matemática de 3.857 presos para o ano, desconsiderando questões político-sociais, conforme verificada pela estatística da Polícia Civil que indica o aumento significativo.

Como é a situação do DF em relação a outras unidades da federação?

O Distrito Federal, por sua peculiar situação geográfica, se vê como importante ponto de distribuição de entorpecentes para outras unidades da federação. Por determinação legal, o tráfico de drogas deve ser reprimido pelo sistema de justiça criminal e por políticas de segurança pública. Os números de apuração e de atuação do Poder Judiciário evidenciam, é possível afirmar, que o tráfico de drogas é reprimido com rigor no Distrito Federal. Em número de registros, em 2020, o DF ocupava o 4º lugar no ranking de tráfico de drogas no país, com 2.730 registros. Perdia apenas para São Paulo (7.869), Minas Gerais (5.279) e Ceará (3.301), os dois primeiros com nítida distinção populacional e territorial. O aumento das apreensões de drogas gera reflexos diretos no volume de trabalho do Judiciário local e da Justiça como um todo. Dada a especialização das varas pela organização judiciária do DF, cinco varas, hoje titularizadas por nós, juízas, respondem por todas as situações de tráfico do Distrito Federal.

E o tráfico leva a outros crimes. Como é o trabalho da Justiça?

O tráfico de drogas é tipo de crime que usualmente vem acompanhado, nos casos mais destacados, de uma série de outras ações igualmente graves: crimes violentos, lavagem de dinheiro, associação criminosa e até mesmo formação de organizações criminosas. Isso resulta em investigações mais complexas e extensas, que por sua vez geram processos criminais de maior volume e complexidade. Inúmeras medidas cautelares, como buscas e apreensões, interceptações telefônicas e acessos a dados telemáticos, prisões processuais etc. são situações peculiares em processos criminais e, no caso das varas especializadas, situações presentes em destacado número de processos. Por não raro envolverem a restrição da liberdade do investigado ou acusado, tais processos exigem celeridade e cuidado redobrado por parte do julgador. Apenas para ilustrar, é comum que processos nas varas de entorpecentes noticiem o envolvimento de expressivo número de investigados, além de situações de prisão processual que se alongam da investigação até o processo formalizado em juízo. A resposta do Estado dirigida ao tráfico de drogas demanda, da parte do Poder Judiciário, incremento de estrutura e atenção integral das ações que envolvem os demais atores do Estado. Isso para permitir a implementação das polícias de prevenção, atenção e reinserção de usuários, bem assim a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.

E no consumo? Houve aumento?

Durante a pandemia, houve uma edição especial do Global Drug Survey (GDS), cujos dados afirmam aumento do consumo de substâncias entorpecentes no Brasil: 17,2% de maconha; 7,4% de cocaína e 12,7% de benzodiazepínicos (Diazepam, clonazepam, alprazolam). A percepção de aumento ou decréscimo do consumo diz respeito à circulação de drogas e às políticas de prevenção e assistência ao usuário. Essa complexa relação, portanto, guarda pertinência com o aumento de drogas em circulação e com o incremento da vulnerabilidade da população. Até mesmo a emergência de saúde pública, decorrente da pandemia da covid, se mostra como fator relevante nesse debate.

Como é a postura dos tribunais superiores em relação às prisões em flagrante de suspeitos de tráfico?

A lei não autoriza a juízes que considerem criticamente a atuação dos tribunais a que estão vinculados. De qualquer forma, os problemas do sistema de justiça criminal em relação aos crimes de drogas dizem respeito à Justiça como um todo. Tribunais superiores são parte relevante do sistema de justiça. A expectativa, pois, é de que todos atuem concertadamente para implementar as preocupações que a lei determina como orientadores do papel dos julgadores.

O alto volume de recursos que circulam no tráfico é aplicado na prática de outros crimes? Quais?

É comum o engajamento dos investigados em organizações criminosas e em esquemas de lavagem de dinheiro, que movimentam milhares de reais. E como falamos anteriormente, no contexto da prática do crime de tráfico é comum a ocorrência de outros fatos criminosos em concurso, a exemplo de roubo, homicídio qualificado, violência doméstica contra a mulher, constrangimento ilegal, furto, ameaça, crimes de trânsito, receptação, porte de arma, estupro de vulnerável, contravenções penais e ainda receptação de veículos. Não raro julgamos outros delitos além do tráfico de drogas, por estarem direta ou indiretamente ligados à mercancia das drogas.

A 6ª Turma do STJ considerou ilegal a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial, motivada apenas pela impressão subjetiva da polícia sobre a aparência ou atitude suspeita do indivíduo. Essa jurisprudência vai prejudicar o combate ao tráfico de drogas?

A garantia da inviolabilidade do domicílio sofre restrição pela própria Constituição Federal. Reprimir abusos e ilegalidades é dever dos agentes do sistema de justiça. Ainda permanecem situações em que há necessidade de busca no interior de domicílio. O crime de tráfico de drogas é de natureza permanente, ou seja, o estado de flagrância se prolonga no tempo, de modo que, verificada alguma informação ou indício de que há droga armazenada no domicílio revela-se lícita a busca domiciliar.

Saiba Mais

É possível dizer que o tráfico de drogas é o tipo de crime mais grave, pela violência envolvida em vários aspectos?

O mercado ilícito de drogas ameaça de várias maneiras o Estado, seja pelo crescimento do crime organizado, seja pelos problemas gerados para a saúde pública.

Vimos recentemente um promotor paraguaio assassinado na lua de mel, na Colômbia, com suspeita de um crime executado pelo tráfico que ele investigava. No Brasil, a violência chega a esse nível?

Sabemos que há várias localidades do país em que agentes do Estado estão sujeitos à violência de organizações criminosas. O que devemos evitar é que esse quadro seja instalado na capital da República. Para tanto, é necessário que o sistema criminal, composto das polícias, do Ministério Público e do Poder Judiciário, atue de forma a evitar qualquer vulnerabilidade àqueles que trabalham com o tema, pois é certo que há notícias da presença na nossa região das organizações mais destacadas e conhecidas do país. Mais uma vez repetimos: aparelhar e estruturar as instituições é prioridade. Trabalhar no enfrentamento ao tráfico demanda inúmeros cuidados, que nem sempre são fornecidos pelo próprio Estado, e renúncias diárias, inclusive do convívio com nossas famílias.

Como as organizações criminosas têm atuado no tráfico de drogas no nosso país?

A estrutura da maioria das organizações é semelhante à da operação de grandes consórcios financeiros. São grupos que atuam na compra, produção, armazenamento e cuidado dos bens. Outros são responsáveis por reinvestir lucros e lavar dinheiro, além de fazer o pagamento de funcionários.

Descriminalizar as drogas é um caminho para reduzir a violência no tráfico? Países como Canadá e Holanda permitem o consumo de maconha, com algumas restrições. Daria certo no Brasil?

Há um consenso nas pesquisas e avaliações internacionais de que as políticas públicas de enfrentamento às drogas ilegais devem se basear em evidências e não em ideologias. As políticas públicas precisam levar em conta diferentes demandas, como: a prevenção focada nas populações vulneráveis, a atenção à saúde das pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas ilegais, a reinserção socioeconômica dos dependentes, a aproximação e o engajamento da população, e as medidas de repressão da oferta de drogas ilegais e ao crime organizado devem incluir a repressão da estrutura hierárquica da organização criminosa.

Que drogas poderiam ser descriminalizadas?

A legalização de qualquer entorpecente deve ser fruto de uma discussão ampla com participação de vários setores da sociedade nos fóruns competentes. Nesta discussão, inclusive, deve ser considerado se nosso sistema universal de saúde está preparado para receber os problemas de saúde causados pelo uso indiscriminado de drogas, assim como os agentes envolvidos na segurança pública poderão contribuir para que seja cumprida a decisão tomada pela sociedade.

Além da tipificação penal, entre outros aspectos, a lei estabelece os parâmetros para definir a situação do réu que possua condenação por crimes anteriores. Como estabelecer uma pena? O que é levado em consideração?

No âmbito da Lei 11.343/06, há tratamento diferenciado para o autor primário, aquele que comete o delito pela primeira vez, ou que ainda não foi afetado por condenação com trânsito em julgado; e para o autor reincidente, aquele que já foi condenado definitivamente por crime praticado anteriormente. No primeiro caso, réu primário, aplica-se uma causa de diminuição da pena que resulta na fixação de uma resposta diversa da prisão, consistente em prestação de serviço à comunidade ou outra pena alternativa. Trata-se do denominado “tráfico privilegiado” e tem como objetivo não afetar a esfera da liberdade daquelas pessoas que se envolveram em fato criminoso dessa natureza de forma casual ou eventual.
No que concerne ao réu reincidente, a referida lei prevê uma resposta mais severa, consistente em pena de cinco a 15 anos de reclusão e, em razão da reincidência, o réu inicia o cumprimento da reprimenda em regime fechado. Como se nota, existem parâmetros distintos para os indivíduos anteriormente condenados por outros crimes.

O que faz um usuário procurar ajuda?

Normalmente o pedido de ajuda não parte do próprio usuário, e é necessário o apoio e envolvimento de familiares e amigos no processo de retomada da consciência. Não raras vezes ouvimos, em interrogatórios, réus que reconhecem que a prisão pelo tráfico foi a situação limite que despertou o desejo de procura por um tratamento em relação à drogadição. O tráfico de entorpecentes envolve diversas condutas, não só a venda com objetivo de lucro. Um hábito comum entre os usuários é o de um deles comprar os entorpecentes com dinheiro recolhido no grupo de amigos para posterior distribuição da parte de cada um. Conduta esta que configura o tráfico e pode ensejar, inclusive, a prisão.

Como a Justiça lida com a questão das mulheres que tentam levar drogas para dentro de presídios?

Essa questão é seríssima, pois envolve a entrada de drogas em presídios que geram consequências graves no sistema prisional, inclusive o risco de morte entre os encarcerados. O delito de tráfico em penitenciárias é vinculado em grande maioria por mulheres que mantém alguma relação de parentesco ou uma vinculação afetiva com o encarcerado destinatário da droga. Normalmente são mulheres que foram presas e condenadas sem antecedentes criminais. Portanto, o afeto figura como um dos motivos mais frequentes. A legislação indica esse tipo de tráfico como mais grave.

Com a mãe presa, o pai preso… Como ficam os filhos? Pode ser uma forma de entregá-los também ao tráfico?

No Brasil, os filhos de encarcerados compõem uma população esquecida. A importância de se obter e disponibilizar dados nacionais de quantas crianças e adolescentes estão separadas de seus pais/mães pelo encarceramento e qual o perfil dessas crianças, se faz urgente e necessária. Pois dessa forma poderá ser conhecida a real dimensão do problema e, assim desenvolver e implementar políticas públicas. Outro ponto importante é o contato dessas crianças com o tráfico. Por exemplo, já tivemos casos de pais que usavam filhos para entregar drogas ou mesmo que lhes davam drogas como pagamento por terem vendido a usuários. É imprescindível, por isso, que essas crianças sejam encaminhadas e acompanhadas para vara da infância até para terem acesso às políticas públicas necessárias para seu crescimento saudável.

É certo a Justiça dar um tratamento diferenciado para usuários, dependentes e traficantes?

Com certeza. A Lei 11.343/06 determina que seja dado tratamento diverso, inclusive ao definir as políticas que devem ser oferecidas ao usuário com a sua reinserção social. O artigo 47 da lei, por exemplo, permite que estas políticas, em especial tratamento, seja dado ao traficante dependente.

Muita gente tem o seguinte raciocínio: se não houvesse o consumo não haveria o traficante. Nesse sentido, não seria um caminho combater o consumo?

A equação acima revela uma simplificação de temas complexos e que demandam análise e reflexão profundas em setores da sociedade, o que inclui por certo o sistema formal de justiça. De todo modo, o primeiro ponto que merece destaque refere-se à distinção da natureza do problema relacionado aos usuários daquele afeto aos traficantes. No que concerne aos usuários, a questão deve ser analisada no âmbito das políticas públicas e sociais, com a participação do controle social informal, composto dos vários segmentos da sociedade civil, sem nos esquecermos de que se trata também de tema de saúde pública. No caso do traficante, a questão merece análise dentro do âmbito do direito penal e da criminologia, sem afastar as políticas sociais, pois é certo que há casos em que a prática do referido crime está relacionada às condições sociais e financeiras do autor. Essa é uma questão que, inclusive, se estende a outros crimes, a exemplo dos delitos contra o patrimônio.

Brasília também tem a sua Cracolândia?

Sim. Exemplo do que ocorre nas proximidades da Praça do Relógio em Taguatinga e o “Buraco do Rato” no Setor Comercial Sul. São locais que merecem atenção do Poder Executivo na implementação de políticas públicas urgentes.

Qual conselho as senhoras dariam para pais que lutam para tirar os filhos do vício?

É comum ouvir das mães e pais que se arrependem de ter questionado pouco os filhos: onde estavam, com quem estavam, por que chegavam naquele horário. A droga não está longe de casa, ao contrário, está com o melhor amigo, nas festas, próxima à porta da escola. Todo dia há uma novidade, algo que transforme o entorpecente mais atrativo para os jovens. Mudam as cores, o formato, o acesso fácil. O sentimento de impotência das famílias diante de filhos inseridos no vício é algo que acaba por desestabilizar todas as pessoas daquele núcleo familiar e não apenas a pessoa que sofre com a dependência química. Atenção redobrada, principalmente diante de tanta tecnologia, é algo que não pode ser descuidado. E assim como aprendemos com os pais que passaram por nossas salas audiência: questione sempre e muito seu filho. Peque por excesso de atenção.