A transferência de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, da Penitenciária Federal de Porto Velho para a Penitenciária Federal em Brasília, em 22 de março de 2019, alterou a rotina no entorno do sistema prisional. Não só pela atenção redobrada de agentes, que passaram a vigiar rigorosamente as relações do líder da maior facção criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, mas também pelo zumbido atípico dos drones que passaram a sobrevoar a prisão. Com base em documentos e processos exclusivos colhidos ao longo de oito meses, o Correio Braziliense traz a primeira de uma série de reportagens que retratam a chegada do PCC à capital da República, o período em que o chefe da cúpula ficou na penitenciária e como isso impactou a segurança pública do Distrito Federal.
"Sabemos que o 'pombo' já voou lá. Até o momento, não tinha 'periquitos'", diz um trecho de carta codificada e recuperada por agentes de segurança em 8 de abril de 2019 no sistema de esgoto da Penitenciária de Presidente Venceslau (SP), onde permanece presa parte da cúpula do PCC. A mensagem encontrada estava rasgada e escrita em um duplo código: além do uso de jargões e termos que somente os integrantes da organização poderiam entender, a própria escrita foi feita de forma que, para um leitor comum, o texto aparentasse ser somente um conjunto de letras aleatórias.
Para os investigadores, o termo "pombo" se refere ao drone, comumente usado pela facção para vistoriar o entorno de cadeias. E "periquitos" são militares do Exército, que, muitas vezes, ficam posicionados na guarda de presídios federais. A carta cifrada também explica qual o objetivo da vistoria aérea: "Tirar o rapaz da terra dos candangos". "Rapaz" é Marcola, também chamado de "Barba de sapo" em outro trecho da carta. Terra dos candangos é a Penitenciária Federal de Brasília. À medida em que a trama vinha sendo desvendada pelas autoridades, uma reação passou a ser planejada pelos órgãos de inteligência da polícia com objetivo de transferir o criminoso.
No início, a transferência do Marcola ao DF desagradou o poder público na capital e mobilizou um enorme aparato da Polícia Federal. Diferentemente de outras unidades da Federação, em que as penitenciárias que abrigam criminosos de alta periculosidade ficam em áreas mais afastadas, a de Brasília está situada em São Sebastião, a apenas 22km de distância da Praça dos Três Poderes.
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A vinda de Marcola acendeu um alerta aos olhos de quem investigava de perto as organizações criminosas na capital. "Questão de preocupação." Assim define o delegado-chefe da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco/Decor), Adriano Valente, sobre a chegada de Marcola. Na linha de frente da repressão às facções, o investigador afirma que o criminoso trouxe com ele pessoas próximas, bem como familiares e aliados. "Apesar disso (transferência), esse grupo não chegou a interferir na célula do PCC no DF. Então, de certa forma, não houve impacto. Nem fortalecimento nem enfraquecimento. Zero interferência", avalia.
A mensagem da carta encontrada um mês após a chegada de Marcola foi escrita por um integrante da facção e deixa clara a articulação da cúpula. No texto, os próprios faccionados falam sobre as dificuldades e a necessidade de traçar um plano diferente de quaisquer outros para que a missão de fuga tivesse êxito. "É só agir no sapatinho (com cautela)". Não demorou muito para que carros blindados do Exército cercassem a penitenciária do DF. Era uma demonstração de força do poder público de que não daria abertura para o plano de resgate.
Carta cifrada
O preso responsável pela mensagem admitiu que o meio utilizado (papel) não era o mais adequado, mas aparecia como a única forma de comunicação (leia abaixo a carta decodificada). Os fragmentos de manuscritos cifrados merecem atenção aos detalhes. O material foi encontrado em abril de 2019, no procedimento de inspeção das celas do Pavilhão Habitacional II da Penitenciária de Presidente Venceslau (SP).
Todos estes apetrechos estavam na rede de esgoto ao lado externo do pavilhão. A revista no esgoto é prática comum nas penitenciárias. É uma das formas de "evitar o descarte de ilícitos por parte dos sentenciados", conforme consta do boletim de ocorrência que faz parte do processo judicial. Os pedaços de papel foram secados e higienizados. Depois disso, os agentes montaram o quebra-cabeças até encontrar a carta criptografada.
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Outros sentenciados citados na carta, além de Marcola, eram peças-chave na estrutura da facção. Entre eles, está Márcio Domingos Ramos, conhecido como "Gaspar" e condenado a 50 anos de prisão por sequestro, porte ilegal de armas, roubo e receptação. Gaspar foi preso por envolvimento na Operação Ethos, em novembro de 2016, que desarticulou uma célula jurídica da organização formada por presos e advogados.
Plano de fuga
3. Documentos oficiais do Ministério Público de São Paulo (MPSP) mostram que os equipamentos são utilizados com frequência em operações contra empresas de valores, agências bancárias ou no resgate de presos. Em contrapartida, o dispositivo tecnológico serviu para alertar o poder público de que estava em curso um plano para libertar Marcola, quando ele ainda estava preso na Penitenciária de Presidente Venceslau (SP).
A denúncia do MP ressalta que dados da Coordenadoria das Unidades Prisionais da Região Oeste do Estado de São Paulo (Croeste) indicaram o gasto de milhões de dólares no plano de resgate. O esquema incluía a compra de veículos blindados, aeronaves, material bélico, armamento de guerra e, inclusive, a contratação de um exército de mercenários que passavam por treinamento na Bolívia. Contudo, o valor exato envolvido no plano não foi especificado.
Toda a operação era coordenada por Gilberto Aparecido dos Santos, o "Fuminho", apontado como braço-direito de Marcola, e o mesmo homem que, posteriormente, seria responsável pelo plano de tirar o líder do PCC da Penitenciária de Brasília. Em decisão assinada em 9 de fevereiro de 2019, que autorizou a transferência de Marcola para o sistema penitenciário federal, o juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci narra que, para o resgate, Fuminho teria arregimentado criminosos responsáveis por roubos a empresas de valores e bancos, incluindo soldados africanos no manuseio de armamento pesado e explosivos, em 2017 e 2018.
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O complexo plano abrangia o bloqueio da rodovia Raposo Tavares, próxima à Penitenciária de Presidente Venceslau; um ataque ao Comando da Polícia Militar da região com granadas e explosivos, o que impediria a mobilização policial; e o ataque ao hangar da PM, evitando a decolagem do helicóptero Águia. Posteriormente, seria utilizado um lança-foguetes e outros explosivos para destruir o muro do presídio, concluindo o resgate. Para dificultar ainda mais a reação do poder público, a estação de energia seria atacada, deixando a cidade sem luz durante a ação.
Após a fuga, o combinado era que os criminosos fossem até o aeroporto de Presidente Venceslau, a 1,5km do presídio, e embarcassem rumo à Bolívia ou ao Paraguai. O poder público reagiu cercando a penitenciária com agentes dos grupamentos de elite da polícia paulista. O próprio aeroporto foi interditado, com a instalação de barreiras físicas na pista. E ainda assim, caso tudo desse errado e os faccionados conseguissem embarcar, seriam usadas cinco metralhadoras anti-aéreas cedidas pelo Exército. A operação fracassou depois que um jatinho, que seria usado no resgate, foi apreendido no Paraguai.
Logo após a decisão do governo de transferir a cúpula do PCC para presídios federais se tornar pública, um novo plano de ação foi traçado pelos criminosos: se não fosse possível libertar Marcola, por meio da força bruta, o grupo partiria para a intimidação. De dentro do presídio foi dada a ordem para os assassinatos dos principais agentes públicos ligados à decisão. Quatro pessoas tiveram a morte encomendada: Lincoln Gakiya, o "Japonês", promotor de Justiça que pediu a transferência da cúpula do PCC; Roberto Medina, então coordenador das unidades prisionais da Região Oeste de SP; Luiz Fernando Negrão Bizzoto, diretor-geral da Penitenciária II de Presidente Venceslau; e Mauricio Moreira de Souza, diretor do Núcleo de Segurança e Disciplina. A ordem macabra foi descoberta em dezembro de 2018. Em fevereiro de 2019, a Justiça autorizou a transferência de Marcola para Brasília. Desde então, os alvos da facção são protegidos num forte esquema de segurança.
Leia abaixo o texto já decodificado, com substituição de termos próprios do PCC por termos de entendimento geral. A substituição de termos foi feita com base nas conclusões dos investigadores presentes no processo:
“Primeiramente, um forte abraco a todos.
A situação está da seguinte forma: quem esta fechando no Pavilhão Habitacional 1, da Penitenciária II de Presidente Venceslau são os nossos irmãos Gaspar (Márcio Domingos Ramos, o Márcio Sombra) e Ralf (Wilber de Jesus Mercês); e no Pavilhão Habitacional 2 o Ariel (Valdeci Francisco da
Costa). A sintonia esta na rua, mas temos ordens deixadas pelo Barba de Sapo (Marcola) que temos que agir na inteligência.
O Carlao da Zona Norte já esta fechando na territorial e mandou salve para todos da restrita dos outros estados. Tem que disponibilizar dois irmãos de responsa de cada quebrada para formar um time da hora. Estamos no aguarde do Magrelo (Gilberto Aparecido dos Santos) para dar retorno se vai tirar o Marcola da Terra dos Candangos (Brasília). Sabemos que o drone já voou lá. Atá o momento não tinha militares do Exército por lá, mas sabemos que [para] tirar o Macola de lá, tem que ser um tabuleiro (plano) diferenciado de todos e so com o apoio do menino (Gilberto) que podemos concluir o resgate. Esse time do Carlão. É para agir no sapatinho (com cautela). No momento certo vamos para cima dos vermes que mandaram os nossos amigos para aquele lugar desumano. Sabemos que o tabuleiro utilizado não era o correto, mas só tinha esse para se comunicar na urgência”.
* Especial para o Correio
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