Registro civil

Pessoas trans ainda enfrentam batalha para retificar o nome

Nos seis primeiros meses deste ano, 22 pessoas trans reconheceram em cartório um direito permitido desde 2018. Serviço evita constrangimentos, mas esbarra na burocracia e carece de divulgação mais adequada

Ana Isabel Mansur
postado em 20/07/2022 06:00
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

"Dei entrada no processo de retificação de nome e gênero em 2009, e só consegui em 2011." A longa espera enfrentada por Bianca Moura Souza, 53 anos, para garantir o mais básico dos direitos civis não é mais a regra. "Hoje, o processo demora, mais ou menos, seis meses", comemora a moradora de Taguatinga e servidora pública. Na época, ela precisou entrar na Justiça, por meio da Defensoria Pública do Distrito Federal, para ter acesso à adequação. Desde março de 2018, pessoas como Bianca passaram a ter menos dificuldades para exercer a cidadania, quando uma decisão do Supremo Tribunal Federal permitiu a pessoas trans a readequação de nome e gênero diretamente em cartório, independentemente de cirurgia de redesignação de gênero ou de tratamentos hormonais. Apesar da burocracia, as ações judiciais para obter o direito deixaram de ser obrigatórias.

De lá para cá, o Distrito Federal registrou 196 adequações do tipo. Apenas no primeiro semestre de 2022, 22 pessoas trans buscaram o direito, contra 18 no mesmo período do ano passado. Em 2021, no total, foram 41 atos; e em todo 2020, 34. Os números deste ano foram obtidos pelo Correio com exclusividade pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). "A retificação foi o divisor de águas da minha vida. Antes, não tinha estímulo para nada e meus talentos estavam travados. Passei a ter um horizonte sem limites para ser feliz", emociona-se Bianca, para quem a redesignação significa quebra de paradigmas. "Com isso, as pessoas trans têm um incentivo a mais para estudar e correr atrás de seus sonhos, sem depender das ruas, das mazelas, da prostituição e vislumbrar um futuro de dignidade e respeito", completa a servidora pública.

A possibilidade de retificar os dados diretamente em cartórios trouxe avanços significativos para a população trans. Ludymilla Santiago, uma das fundadoras da Associação do Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Distrito Federal e Entorno (AnavTrans), afirma que, quando o processo exigia participação da Justiça, a decisão ficava a critério do juiz ou juíza responsável pela ação. "Já houve casos absurdos de juízes pedirem para trans desfilarem dentro dos juizados para saber se a pessoa tinha o 'andar' que a identificava com o gênero que estava requerendo", relata. Ela destaca que a identidade de gênero é uma questão de autodeclaração.

Dificuldades

A ampliação do serviço em cartório esbarra em desafios como burocracia, divulgação e acesso a oportunidades. "Tem todo um trâmite. A pessoa precisa ter a documentação do seu cartório de origem, porém, o trânsito desses cidadãos é muito grande dentro do nosso território e isso gera dificuldades. Além disso, muitos não têm condições financeiras para arcar com todos os custos (veja mais em Valores). Por mais que a determinação do STF seja importante, o ideal seria termos leis, vindas dos nossos parlamentos", pondera Ludymilla.

Apesar do ligeiro aumento das retificações entre 2021 e 2022, o número de pedidos é baixo. Mesmo com a facilitação do acesso ao direito, o caminho das pessoas trans em busca da real cidadania ainda é repleto de dificuldades. "Essa procura, de fato, ainda é muito pequena, justamente por falta de políticas públicas. Grande parte dessa população sequer sabe que tem esse direito ou como adquiri-lo. O Estado não faz a divulgação adequada", critica Ludymilla, que ressalta a falta de preparo das pessoas envolvidas. "Não são todos os cartórios que sabem lidar com esses trâmites. Muitos trabalhadores não foram capacitados nem instruídos para lidar com essa demanda", completa.

Isabel Amora, psicóloga da Coordenação de Atenção Psicossocial (CoaP) da Universidade de Brasília (UnB), onde conduz psicoterapia em grupo para a população LGBTQIA , aponta outra importante conquista advinda com a possibilidade de retificação de nome e gênero em cartório: o fim da necessidade de apresentação de laudos psicológicos e psiquiátricos para obter o direito. "Pessoas trans são muito marginalizadas e é muito comum terem seus nomes desrespeitados em serviços públicos", cita a especialista. Ela acrescenta que os danos aumentam ainda mais a exclusão social do grupo. "Essa violência faz com que pessoas trans entrem em intenso sofrimento mental e até mesmo deixem de utilizar os serviços públicos, por medo de sofrerem constrangimentos e humilhações. Negar o nome é negar uma existência", continua a psicóloga.

Aceitação

Isabel aponta a importância psicológica de ter a verdadeira designação registrada. "O nome é a primeira coisa pelo qual somos reconhecidos. Ele faz parte do nosso Eu, de como nos vemos e queremos ser reconhecidos pelos outros", completa a especialista, que pede mais campanhas públicas de combate à transfobia, divulgação dos direitos das pessoas trans e treinamento de agentes públicos para o atendimento ao público.

Davi Marques Cantanhede, advogado civil que atua em parceria com Gabriel Pietricovsky, analisa a importância jurídica da facilidade do acesso à retificação. "Mesmo que já tivessem os direitos garantidos e decisões favoráveis, a necessidade de recorrer ao judiciário significava custos, exposições desconfortáveis e gasto de tempo para mero reconhecimento de um direito pessoal", elenca.

Ele reforça o conhecimento como impeditivo para possíveis descumprimentos legais. "É preciso fiscalizar os cartórios que fazem exigências desarrazoadas ou neguem a gratuidade às pessoas que necessitem dela", aponta. O advogado também defende a retificação nominal e de gênero como ferramenta para que a população trans supere problemas históricos. "O reconhecimento social da autoidentificação em documentos abre portas inimagináveis, dando espaço para que a pessoa entre no mercado de trabalho, que é um dos principais desafios dos indivíduos trans", conclui.

Para saber mais

Pessoas trans que retificaram nome e gênero diretamente em cartórios do DF

22 1º semestre de 2022

18 1º semestre de 2021

41 2021 (completo)

34 2020 (completo)

Fonte: Arpen Brasil

Custos no DF

Retificação em cartório - R$ 47,25

2ª via RG - R$ 42

Mudança de dados na CNH - R$ 156

Passaporte - R$ 257,25 (taxa comum)

Reemissão

Após a retificação, é preciso atualizar os demais documentos. Os cartórios comunicam a mudança aos órgãos competentes, mas a segunda via dos documentos deve ser solicitada pelo cidadão diretamente aos entes responsáveis. Retificar o nome em documentos, como RG e CPF, não altera o número dos registros.

Para pedidos em cartório, não é preciso

• Apresentar laudo médico ou  psicológico;

• Comprovar realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou tratamento hormonal;

• Comprovar que o nome não está inscrito nos órgãos de proteção ao crédito;

• Advogado ou defensor público para pedidos em cartório.

Documentos necessários

• Certidão de nascimento;

• Certidão de casamento, se for o caso;

• Cópias: RG; identificação civil nacional (ICN), se for o caso; passaporte brasileiro, se for o caso; CPF; título de eleitor; e carteira de identidade social, se for o caso;

• Comprovante de endereço;

• Certidões do distribuidor criminal e cível e de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);

• Certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;

• Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;

• Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;

• Certidão da Justiça Militar, se for o caso.

Fonte: Arpen Brasil

Linha do tempo

2011

• Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4277 e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132: O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a união homoafetiva é uma entidade familiar, equiparando-a à união estável entre homem e mulher.

2013

• Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): permitiu habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.

2016

• Decreto nº 8.727: uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

2018 - Março

• Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275: STF reconheceu que os transgêneros, independentemente da cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais, têm direito à substituição de nome e gênero diretamente em cartório.

2018 - Junho

• Provimento nº 73 do CNJ: a averbação da alteração de nome e gênero nos dados de nascimento e casamento no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN).

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  • Bianca Moura: "retificação foi um divisor de águas na minha vida"
    Bianca Moura: "retificação foi um divisor de águas na minha vida" Foto: Ed Alves/CB
  • Ludymilla Santiago ressalta a falta de preparo de pessoas envolvidas com os trâmites
    Ludymilla Santiago ressalta a falta de preparo de pessoas envolvidas com os trâmites Foto: Arthur Menescal/Esp. CB/D.A Press

Conceito

O termo pode incluir mulheres e homens transexuais, travestis, pessoas não-binárias, transgêneros e outras possíveis designações para pessoas transfemininas e transmasculinas

Reemissão

Após a retificação, é preciso atualizar os demais documentos. Os cartórios comunicam a mudança aos órgãos competentes, mas a segunda via dos documentos deve ser solicitada pelo cidadão diretamente aos entes responsáveis. Retificar o nome em documentos, como RG e CPF, não altera o número dos registros.

Para pedidos em cartório, não é preciso:

  • Apresentar laudo médico ou psicológico;
  • Comprovar realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou tratamento hormonal;
  • Comprovar que o nome não está inscrito nos órgãos de proteção ao crédito;
  • Advogado ou defensor público para pedidos em cartório.

Documentos necessários

  • Certidão de nascimento;
  • Certidão de casamento, se for o caso;
  • Cópias: RG; identificação civil nacional (ICN), se for o caso; passaporte brasileiro, se for o caso; CPF; título de eleitor; e carteira de identidade social, se for o caso;
  • Comprovante de endereço;
  • Certidões do distribuidor criminal e cível e de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
  • Certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;
  • Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;
  • Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;
  • Certidão da Justiça Militar, se for o caso.

Fonte: Arpen Brasil

O que é processo de retificação

O nome social é a adoção formal do nome pelo qual alguém se identifica em alguns documentos oficiais, como RG, Título de Eleitor, CPF e Cartão SUS. O uso do nome social, porém, não substitui o nome de registro nem possibilita a alteração do gênero nos documentos. No processo de retificação, é possível adequar nome e gênero (apenas um ou os dois) na Certidão de  Nascimento e em todos os documentos oficiais, excluindo o nome designado ao nascer.

Fonte: Cartilha 'Retifiquei E Agora?', de Casa 1 e PoupaTrans

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