Crônica

Choro brasiliense  

Severino Francisco
postado em 13/07/2022 00:01

No princípio, era a solidão espacial do descampado. Para defender-se, os brasilianos fizeram do apartamento de Raimundo de Brito, na 105 Sul, o quintal para as primeiras rodas de choro. Raimundo era um jornalista muito culto e sarcástico. As mulheres dos boêmios marcavam sob pressão e foram batizadas com a sigla Fidom - Fiscalização Doméstica. Em 1967, o médico Arnoldo Velloso e o advogado Francisco de Assis, o Six, viajaram até o Rio de Janeiro para conhecer Jacob do Bandolim.

O mestre estava prostrado em uma cama havia três meses, com um sério problema na coluna. Six era gaiato e se apresentou na condição de ginecologista. Velloso estudou na Alemanha e, com a ajuda de Six, fez aplicações da técnica de terapia neural. No dia seguinte, quase que milagrosamente, Jacob levantou-se, pegou o bandolim, chamou Elizete Cardoso e tudo virou uma festa. E assim, estabelecia-se uma conexão afetiva e musical de Jacob com Brasília.

Quando Jacob tocava nas reuniões do sábado à tarde no apartamento de Raimundo de Brito, as sessões se revestiam de uma sacralidade de missa, era preciso cuidado até para respirar. Jacob exigia uma reverência absoluta à música. Incentivava e cobrava. Não poderia haver mestre mais carismático e rigoroso. Jacob surpreendeu a todos ao afirmar que o citarista Avena de Castro era seu melhor intérprete.

Se o samba é um gênero de classes populares, o choro é de classe média: e veio para Brasília transferido com os funcionários públicos. Ao se mudar do Rio para a capital modernista, Bide da Flauta, o instrumentista preferido de Pixinguinha, resolveu comprar uma espingarda, pois os jornais cariocas diziam que havia muita onça. Mas ele não encontrou nenhuma onça: topou com Pernambuco do Pandeiro, que logo convidou para animar as rodas de choro.

Certa noite, Tio João travou um duelo com um morcego da Rodoviária até o Clube do Choro. Tio João se defendia com o trombone, mas o morcego contra-atacava com voos rasantes na escuridão do Eixo Monumental. Quando as rodas de choro foram transferidas para o apartamento de Odette Ernest Dias, na 311 Sul, as plantas da flautista revelaram um ouvido apuradíssimo. A audição continua daqueles mestres fez com que plantas vicejassem com um esplendor extraordinário.

Com extrema lucidez, Reco do Bandolim profissionalizou o Clube do Choro e criou a Escola de Choro Raphael Rabello. Elas projetaram o choro rumo à plataforma do futuro: antes delas o choro era “música de velhos”. Depois, tornou-se música de jovens. Hoje, é possível encontrar uma legião urbana de crianças e adolescentes armados de violões, cavaquinhos, bandolins e pandeiros.

Revelou uma infinidade de talentos da música, que brilham nos palcos mais importantes do país. O Clube do Choro é endereço da boa música e endereço da educação de qualidade. É o que precisamos para construir um país melhor. O Clube do Choro é um motivo de orgulho para Brasília.

 

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