No fim de 1993, ao saber que o poeta mato-grossense Manoel de Barros estava de passagem por Brasília, eu o procurei para entrevistá-lo, e um amigo me avisou: "Ele só concede entrevistas por escrito". Mesmo com a advertência, não desisti e parti para o ataque, confiante em minha suposta capacidade de persuasão.
Ao me encontrar com Manoel, em uma sala do Congresso Nacional, ele foi simpático elegantemente firme: "Não, entrevista só por escrito. Quando a gente fala, as palavras voam e nos perde". Conformado, perguntei: "E quando você devolve as respostas?". Ele respondeu: "Sei que vocês jornalistas trabalham com horários de fechamento, mas o meu tempo é outro. Se puder assim, tudo bem".
Enviei as perguntas a Manoel no endereço combinado e entreguei a Deus, sem esperar nada. O tempo passou e, quando já me havia esquecido completamente da entrevista, seis meses depois, recebi carta com uma letra miúda e desenhada. Eram as respostas de Manoel: "A minha posição é muito desmarcada", dizia o poeta. "Eu só marco desencontros: e vou a todos."
Perguntei a ele se, em algum momento, um anjo torto lhe soprou ao ouvido: "Vai, Manoel, ser poeta, vai fabricar inutensílios na vida!". E ele replicou: "Durante 80 anos, um louco de beco e estandarte ficou esperando eu nascer. Errou pelas casas do Beco do Urubu, a tocar violão, a fazer trovas tortas. Seu cujo-apelido era Neco Caolho porque via de atravessado. Penso que venho do torto de suas trovas e de seus becos. Contam que esse parente meu se ocupava de inutensílios. Apregoava urinóis enferrujados. Ele tinha uma voz de harpa destroçada".
A visão de Manoel de que a poesia seria um conhecimento inútil sempre me intrigou, pois ela toca no essencial, funda o ser. Como poderia ser inútil? "Poesia é muito cheia de mistério para ter utilidade", devolveu o poeta: "Pode ser brinquedo de namorar. Pode ser a inauguração de uma linguagem. Mas, quando eu falo que a poesia é inutensílio, é porque ela não tem valor extrínseco. Um valor que tem um traje, um pilão, um liquidificador, um lupanar, um pente. Poesia só tem valor intrínseco. Só o carrega (só) a essência do homem. É muito intumescida de nossos mistérios. Não serve para nada. Só para ficar iluminante".
Ao ler as respostas de Manoel, logo percebi por que ele só aceitava responder por escrito. É porque tudo em sua vida era perpassado pela poesia. E detectei vários trechos da entrevista em poemas que ele publicaria mais tarde: "Faço poesia pregada no ser. Só as coisas pequenas me celestam". Para Manoel, a entrevista pertencia ao gênero poesia.
Enquanto os poetas da República costumam se tornar acadêmicos quando a idade avança, ele conquistava a cada dia um novo grau de inocência e audácia. Manoel foi-se como aquele gato de Alice no país das maravilhas, que desapareceu, mas deixou um sorriso parado no ar: "Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro/Para mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)/Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil/Fiquei emocionado e chorei/Sou fraco para elogios".
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