"É revoltante. Ele está com febre, em tempo de ter convulsões, chorando de dor e não foi atendido", descreve, desesperada, ao Correio Luana Leite, 34 anos, mãe de Heitor, 4, no Hospital de Taguatinga (HRT), depois de procurar, em vão, o Hospital de Ceilândia (HRC) quatro vezes. No Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), Fátima dos Santos, 59, estava há quatro horas esperando pelo atendimento da pequena Lívia, 6. "É um constrangimento pedir ajuda para sua filha e não ter médico", desabafa.
"É muito frustrante, ir em um lugar, não ter médico e ter de ir a outro", reclama Amoriele Andrade, 30, no Hmib, com o filho Êndrio, de apenas 2 anos, após buscar ajuda, sem sucesso, no Hospital de Samambaia (HRSam) e no HRT. "Só Deus sabe quanto tempo vamos esperar. A demora agrava a situação", critica Cláudia da Cunha, 45, que aguardava atendimento no HRT para o filho Tiago César, 11, com crise severa de asma. Para Samile de Campos, 27, mãe de Heitor Gael, 4, o pior é o cansaço causado pelas longas esperas. "É triste ver nossas crianças passando por isso. Pagamos impostos tão caros e, ainda assim, temos de esperar tanto", reclama.
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Além das frustrações, Fátima, Amoriele, Cláudia, Luana e Samile compartilham o sentimento de revolta quando o assunto é o atendimento público de saúde no Distrito Federal. E o descaso não é recente. Por conta das crises de asma recorrentes, Cláudia e Tiago César precisam ir ao HRT com frequência. Para a manicure, o problema está em obter, de fato, atendimento médico. "O difícil é conseguir entrar. A demora é aqui fora. Já cheguei a ficar mais de três horas aguardando. Fico desesperada. Na última vez, quando finalmente conseguimos entrar, a crise asmática estava tão forte que ele corria risco de ser intubado, com a saturação muito baixa", relembra a moradora de Samambaia.
Luana conhece bem a chateação causada pelas longas esperas. No HRT, o filho Heitor demorou duas horas para ser acolhido. "Antes, no HRC, avaliaram, na triagem, que o caso era de pulseira verde (pouco urgente, atendimento sem prioridade) e liberaram para casa. A demora agravou os problemas dele, que precisou tomar Benzetacil (antibiótico injetável) e remédio na veia", reclama a também moradora de Samambaia. De acordo com ela, empurrar os pacientes de uma unidade para outra, reforça o descaso do governo do Distrito Federal. "Precisa melhorar muita coisa, tem de ter mais médicos para atender e diminuir a demora. Está um caos", completa Luana.
Cobertura
A pequena Lívia Carolina tinha passado mal durante a noite anterior inteira, com fortes dores na barriga. "Levei na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Núcleo Bandeirante, mas não tinha pediatra, me disseram que apenas no Hmib ou no Hospital do Gama. Não sei se é só hoje (ontem). Acho um absurdo, não pode faltar atendimento para crianças", denuncia a aposentada Fátima, mãe da menina. "Não podemos fazer nada. O governo não ajuda, e é o que a população mais precisa, de ajuda", insiste a moradora da Candangolândia.
Ao Correio, a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) informou que as UPAs não dispõem de atendimento pediátrico. "Nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), o atendimento é feito por médicos da família." De acordo com a pasta, há, atualmente, 5.173 médicos atuando na rede pública, dos quais 534 são pediatras. Ao reconhecer o deficit, a secretaria destacou que "tem feito todos os esforços para a recomposição de profissionais em seu quadro, por meio de contratação temporária e efetiva". Segundo a SES-DF, nove hospitais da rede oferecem emergência infantil.
Na terceira tentativa, Amoriele finalmente conseguiu atendimento para o pequeno Êndrio, no Hmib. "Me falaram que ia demorar, porque tinha muitas crianças e poucos médicos", conta a vendedora, que descreve o estado de saúde do filho. "Ele está com febre alta, tosse, muito catarro e sem comer nem beber há seis dias. Está desnutrido", preocupa-se a mãe. "No HRT não tinha pediatra, clínico nem ginecologista, por isso vim aqui. A UBS de Taguatinga estava superlotada. É preciso melhorar a pediatria urgentemente", cobra a moradora de Taguatinga Norte. "Ir embora para casa e ficar com a criança doente é pior. Melhor esperar, mesmo que sejam cinco horas. O governo deveria ter mais consciência e melhorar a assistência hospitalar. Por mais que a gente reclame, não somos ouvidos", desabafa Amoriele.
A manicure Samile foi ao Hmib para fazer o teste da covid-19 no filho Heitor Gael, 4. "Fui ao posto de saúde perto da minha casa. Lá, passaram remédios e uma bombinha de ar, porque ele estava cansado", relata a moradora do Areal. "Em Taguatinga, tem a Clínica da Família, e toda vez que eu preciso, consigo atendimento. Porém, às vezes, ele passa mal de madrugada e lá no HRT muitas vezes não tem pediatra", conta Samile. "Na semana retrasada, tivemos de esperar quase cinco horas. Está bem caótico. Quem está no governo precisa pensar mais na gente, em vez de fazer tanta obra por aí, como estão fazendo. Eles não precisam de hospital público quando passam mal, não enfrentam as filas que enfrentamos", critica.
Ênfase
Professora da Universidade de Brasília (UnB), Ana Maria Nogales defende a priorização da atenção primária à saúde. A integrante do Observatório de Políticas Públicas do DF (ObservaDF) aponta que o foco nas funções básicas de saúde pública veio tardiamente no DF. "Demoramos muito na mudança para esse modelo, que é a porta de entrada do sistema. A população não estava acostumada a esse tipo de atendimento, que visa a promoção da saúde e a prevenção de doenças", descreve a professora. A inovação ocorreu durante o governo passado, quando, segundo a docente, os profissionais também não estavam preparados para a nova lógica. "Sabemos que priorizar a atenção básica é o recomendado, mas ainda faltam recursos justamente nessa área. Não estamos tendo investimentos de acordo com a necessidade da população", critica Ana Maria.
A especialista analisa que, em termos de recursos, embora haja espaço para mais alocações, é preciso utilizar adequadamente os valores disponíveis. "O DF é uma das unidades federativas que mais recebe recursos da União para a saúde. Precisamos saber investir melhor, porque há muitas perdas. As boas práticas devem ser incorporadas e os processos de avaliação, contínuos. Se não reconhecermos os erros, não temos como corrigi-los", associa a especialista.
A professora Fátima Sousa, da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, reforça a opinião da colega. "O SUS (Sistema Único de Saúde) é desfinanciado no Brasil, mas, no DF tem o 'privilégio' de contar com três fontes: a própria, o Fundo Constitucional e o SUS. Logo, poderia-se utilizar decentemente os recursos públicos. O que falta é lisura e ética na gestão governamental", critica.
Para ela, o desprezo se reflete na saúde dos servidores. "Os profissionais estão em sofrimento mental, sem poder responder aos desmandos do governo, que não assegura condições de trabalho. É desumano. Esse quadro de terror se agrava com as demandas que foram represadas durante a pandemia, e agora, acrescidas às sequelas da covid-19", acrescenta a professora, que pede ampliação do atendimento por meio do programa Saúde da Família, abastecimento de medicações e equipamentos e maior presença dos agentes comunitários.
O pensamento é apoiado por Jorge Henrique, presidente em exercício do Sindicato dos Enfermeiros (SindEnfermeiro-DF). Para o representante, o fortalecimento da atenção primária ainda está longe de ser realidade. "Hoje, o modelo é muito voltado ao atendimento de demandas emergenciais. A atenção primária não funciona na lógica da Estratégia da Saúde da Família (equipe multidisciplinar que conhece o território de atendimento e o perfil de morbidades e adota ações de prevenção e promoções específicas, de acordo com a realidade da região) e os pacientes chegam nas unidades com o problema exacerbado. As UBSs estão abarrotadas", descreve Jorge, ao citar a desorganização da rede assistencial do DF, que envolve, além da atenção primária, os níveis secundário (hospitais, Centros de Atenção Psicossocial e policlínicas) e terciário (alta complexidade).
O presidente do SindEnfermeiro critica a falta de comunicação interna entre a rede. "Quando todas as unidades de saúde eram da secretaria, a facilidade era maior. Hoje, o sistema informacional da SES-DF é um e o do Iges (Instituto de Gestão Estratégica em Saúde) é outro. Os sistemas não dialogam", afirma Jorge, para quem a lógica do sistema público de saúde do DF é hospitalocêntrica. "É uma ótica medicalizada em detrimento de um modelo de prevenção, que é o que organizaria toda a rede. Há negligência da SES com a atenção primária. Há muitos vazios assistenciais, territórios que sequer têm UBSs. O deficit de profissionais é enorme. Precisamos que os indicadores sejam suficientemente analisados, para estabelecer novos processos de trabalho e saber onde alocar novos servidores", sugere.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira