Desempregadas, com aluguel atrasado e sem comida na mesa: dramas que permeiam a vida de milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade no Distrito Federal. E, entre quem procura os serviços públicos de assistência social para conseguir o mínimo necessário à sobrevivência, restam as sensações de humilhação e descaso. A reportagem do Correio percorreu quatro unidades dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), ouviu relatos e acompanhou a situação de quem precisou madrugar nas filas para aguardar atendimento.
Na manhã de quinta-feira (23/6), na Estrutural, ao menos 10 mulheres acampavam em frente ao portão do Cras — ainda fechado, devido a uma paralisação dos servidores. Algumas levaram colchão, lençóis, cadeiras e até um sofá para passar a noite em frente à entrada, onde construíram uma fogueira para se aquecer na madrugada fria. Os atendimentos voltam só na segunda-feira (20/6), com distribuição de senhas ao público.
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Morando de favor na casa de amigos, Edilene Rosalina de Miranda, 26, sobrevive com a ajuda dos bicos que faz na Feira do Guará. Mãe solo de duas crianças, de 3 e 8 anos, a moradora da Chácara Santa Luzia deixa os meninos na escola e, diariamente, há mais de uma semana, passa manhãs e noites na fila do Cras da Estrutural. A jovem se reveza com amigos para buscar os filhos no colégio e levá-los para casa. "Depois que me separei, vim buscar ajuda do governo para conseguir me reerguer. Estou começando a dar entrada em tudo, porque não recebo benefício nenhum. A única coisa que eu pegava era o auxílio emergencial. A gente precisa (de assistência), e estamos correndo atrás", comenta.
Edilene conta que tentou ligar no telefone divulgado pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) para fazer o agendamento, mas não foi atendida. "Por isso, vim até aqui. Mas é humilhante passar por isso. A gente é humilde e realmente precisa dessa atenção do Estado neste momento de dificuldade". Na fila, sobra solidariedade ao menos entre quem aguarda, segundo ela. "Uma traz colchão, outra traz comida. Assim, vamos levando", completa.
Realidade
Em frente à mesma unidade, Ingrid de Sousa, 29, esperava sob uma lona enquanto amamentava o filho de 1 ano. Mãe de mais duas crianças — uma menina de 7, outra de 11 —, a jovem conta que só não ficou sem o que dar de comer à família porque contou com a ajuda de vizinhos para conseguir uma cesta básica. "Com R$ 50, você mal consegue comprar um saco de arroz, óleo, sal nem ovos, já que o preço da carne está absurdo. Não é escolha estar aqui (na fila), é necessidade. Estou desempregada, há mais de um ano sem trabalhar e meu aluguel está atrasado. Se eu não pagar, vou morar onde? Debaixo da ponte com meus filhos?", questiona a moradora da Estrutural, que tenta atendimento no Cras desde a semana passada.
Impossibilitada de trabalhar há cinco anos devido a problemas de saúde, Maria Aparecida de Oliveira, 50, depende do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Agora, tenta regularizar a situação e atualizar os dados de cadastro antes que o prazo termine e fique sem receber os depósitos. "A única renda que tenho é essa", lamenta. Todos os dias, ela sai da Chácara Santa Luzia e caminha cerca de 2km até o Setor Oeste, onde fica o Cras da Estrutural. Com o dinheiro que economiza com a passagem de ônibus, consegue pagar a volta para casa à noite e comprar algo para comer. "As passagens estão muito caras para ir e voltar. Com o dinheiro, vou ao Restaurante Comunitário para fazer, ao menos, uma refeição e não passar mal, porque tomo remédio controlado e tenho diabetes", completa.
As crises econômica e social também comprometeram a vida de Ana Paula Cavalcante, 27, moradora do Recanto das Emas e sem emprego há quase um ano. Para conseguir pôr comida na mesa e se alimentar com as duas filhas, de 5 e 8 anos, ela recorreu ao Cras da região administrativa na quarta-feira (22/6), mas sem sucesso. No dia seguindo, a paralisação dos servidores resultou em mais um dia de espera. “Quero pedir os benefícios possíveis, mas, primeiro, os auxílios Aluguel e Brasil, para pagar minha moradia e o básico de alimentação”, diz.
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Conjuntura
A paralisação afetou outro Cras visitado pelo Correio, o de Samambaia Sul, que estava fechado na quinta-feira (25/6). Nesta sexta-feira (24/6), a unidade atenderá apenas grávidas que precisam do Auxílio Maternidade, cujo valor depende da renda mensal recebida pela mãe. Mestre em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Camila Galetti observa que enquanto parte da população corre atrás do atendimento, os servidores dos centros de referência cobram melhores condições de trabalho. “Esse é um reflexo de como o Brasil se encontra em um contexto de extrema pobreza. As famílias em busca de R$ 400 têm urgência, pois não têm o que comer no dia a dia”, avalia.
No Brasil, o DF foi a unidade da Federação que mais empobreceu entre o primeiro trimestre de 2019 e janeiro de 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre). Para a classificação, o Banco Mundial considera que um indivíduo vive em situação de pobreza quando tem renda de US$ 5,50 (R$ 28,76) por dia. No caso da extrema pobreza, essa quantidade cai para US$ 1,90 (R$ 9,94). Para agravar o cenário, atualmente, o desemprego afeta mais de 262 mil pessoas (15,9%) da população economicamente ativa, segundo a Pesquisa de Emprego e Desemprego no Distrito Federal (PED-DF) mais recente, divulgada em maio pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
Raimundo Veríssimo, 63, entra nessa estatística, pois ficou sem trabalho formal por três anos e meio. Agora, tenta dar entrada na aposentadoria. Há oito dias à espera do serviço no Cras do Recanto das Emas, onde mora há 12 anos, ele afirma que o atendimento sempre ocorreu de forma semelhante. "A gente fica ao relento, dormindo nos lugares. Dão cerca de 24 senhas, chega minha vez e jogam o atendimento para o dia seguinte. Deviam nos colocar embaixo da tenda, pois melhoraria a sensação de insegurança que temos aqui fora", sugere.
Pandemia
Questionada pela reportagem sobre os problemas relatados pelos entrevistados, a Sedes informa que a demanda por assistência social no DF é "histórica" e que não se trata de fato recente. "A importância da política de assistência social ficou ainda mais evidente diante das consequências econômicas e sociais advindas da pandemia", destaca a pasta. A secretaria acrescentou que, em 2020, atendeu 130 mil famílias, número que aumentou cerca de 30% em 2021, totalizando 175 mil beneficiadas. Em relação aos primeiros cinco meses deste ano, o total de atendimentos foi de, aproximadamente, 100 mil.
A Sedes ressaltou que, apesar de haver o serviço de Wi-Fi Social nos Cras, as famílias pediram atendimento presencial em razão da falta de acesso à internet em casa ou devido a dificuldades com o agendamento eletrônico. Por isso, a pasta adotou o sistema híbrido em 2020. "Ainda existe a possibilidade de não se enfrentar fila agendando o serviço", completa a nota enviada pelo órgão. A secretaria também comunicou que uma equipe técnica segue com articulação para adoção de outras estratégias, a fim de fortalecer o atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade social.
Insegurança alimentar
206.340
Pessoas nessa condição no Distrito Federal
29,2%
Delas deixaram de ter uma alimentação saudável e variada por falta de dinheiro para comprar comida
22,1%
Não se alimentaram com quantidade suficiente pelo mesmo motivo
22%
Das crianças e adolescentes tiveram queda na quantidade de alimentos consumida
17,6%
Deixaram de fazer alguma refeição porque não conseguiu comprar alimento
17%
Sentiram fome e não comeram por falta de condições financeiras
Fonte: Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de 2021 da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan)
Palavra de especialista
Variáveis de efeito
A pessoa chega em casa e não tem nem gás para cozinhar. Isso é uma coisa que leva a outras e a população mais pobre é mais atingida em função de não conseguir se defender do fenômeno da inflação, que atinge dois dígitos atualmente. Muitas vezes, focam na cesta básica, mas os produtos dela têm ficado com preços acima do poder aquisitivo das pessoas. Com isso, elas começam a ter outra dificuldade: com os Cras. Bate o desespero de receber ou não apoio do serviço público. E, do ponto de vista de atendimento, para que a máquina pública funcione, você encontra uma demanda muito grande e desesperada. Nessa (situação de) insegurança alimentar, muitas pessoas vão aos lixos para pegar restos de comida e sem cuidado com a higiene dos alimentos, elas acabam passando mal, sobrecarregando também o sistema de saúde.
César Bergo, economista e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal (Corecon-DF)