O golpe militar de 1964, que contou com o apoio quase unânime das camadas dominantes e de muitos setores da classe média, as invasões da polícia à Universidade de Brasília (UnB) — com a prisão indiscriminada de professores e alunos considerados subversivos —, e tantos outros episódios que marcaram a política nos anos 1960 e 1970, estão reunidos em uma publicação histórica, o livro UnB Anos 70 — Memórias do Movimento Estudantil. Organizada pela jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano, a obra avança pelos anos 1980 e 1990, passando pelo movimento Diretas Já e pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello.
O lançamento será no emblemático Anfiteatro 9 da Unb — palco de grandes plenárias do movimento estudantil na década de 1970 —, em 26 de junho, durante a 74ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), seguido de uma mesa redonda com parte dos autores.
Editado pela Alameda, o livro traz artigos de 40 colaboradores. UnB Anos 70, resume Maria do Rosário, é resultado de um mutirão de colegas, hoje sexagenários ou septuagenários, que não se viam desde as passeatas pelo câmpus, assembleias no Teatro de Arena, conferências da SBPC, aulas especiais nos anfiteatros do Minhocão ou até nos cárceres da Polícia Federal — que manteve alguns deles presos por meses.
São 456 páginas de artigos e fotografias — a maioria do Correio — do período mais conturbado do movimento estudantil no país. Agrega ainda documentos da Comissão Nacional da Verdade — instalada pelo governo federal em 2012 para investigar violações de direitos humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988. Mesmo antes do lançamento, a publicação, com orelha e contracapa assinadas pelo cineasta e documentarista paraibano Vladimir Carvalho, já tem quase mil exemplares vendidos.
"Tudo no livro é polêmico", diz Maria do Rosário, lembrando que a ideia surgiu em 2021, quando veio o insight de reviver essas memórias, "antes que elas ficassem esclerosadas". A jornalista cita como uma grande motivação do projeto o documentário Libelu — Abaixo a Ditadura, de Diógenes Martins, que mostra onde estão e como pensam os jovens trotskistas que foram às ruas contra os generais no auge da ditadura militar. "Este filme retrata apenas os fatos ocorridos no Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto Brasília teve muita importância naquele período. Não há na película um momento sequer dos episódios ocorridos na UnB", destaca.
Resistência
Para o professor e ex-secretário de Educação do Distrito Federal Júlio Gregório, o livro "é meio anárquico, mas muito gostoso de ler, traz à tona um tempo da história que ficou sem documentação, quando a UnB estava dizimada, era uma terra arrasada". Entre os fatos marcantes relatados, ele destaca o ocorrido em 11 de outubro de 1965, quando o então reitor da UnB, Laerte Ramos de Carvalho, demitiu arbitrariamente três influentes professores da instituição — Ernani Maria de Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas. Em protesto, o corpo docente decretou uma greve de 24 horas, com adesão dos estudantes. Diante disso, o reitor pediu o envio de tropas militares, que cercaram todos os acessos ao câmpus e, na semana seguinte, demitiu outros 15 docentes —, ação que levou 223 dos 305 professores a pedirem demissão. "Espero que o livro reacenda a chama do movimento. Que a moçada de hoje saiba que muitos de nós viemos a fazer história, e que esses jovens tenham a consciência de que eles serão o futuro", destaca Gregório.
A jornalista Tereza Cruvinel observa que, ao longo da ditadura, os estudantes representaram a vanguarda da resistência e bateram de frente com a força bruta da repressão, mas que foram os enfrentamentos ocorridos em Brasília, no quintal do regime, que mais incomodaram os militares. "Tanto é que a UnB foi invadida, com prisões de alunos e professores uma semana depois do golpe. E foi novamente invadida em 1965, em 1968 e em 1977. Da UnB saiu Honestino Guimarães, o mártir mais simbólico da sanha contra a juventude. E também João Simplício, da geração 70, que, embora não tenha sido assassinado, não suportando as feridas deixadas pela perseguição, deu cabo da própria vida."
Ela pondera que a UnB, por diferentes motivos, atraiu como nenhuma outra universidade o ódio da ditadura, entre eles, por estar na capital, ter sido fundada por Darcy Ribeiro, concebida no governo Juscelino Kubitschek e ter tido a lei de criação sancionada pelo então presidente João Goulart. Lembra ainda que muitas figuras destacadas do movimento estudantil não foram localizadas a tempo de darem seus depoimentos e 14 morreram. A saída, segundo ela, foi suprir essa lacuna com o registro de suas atuações no Caderno de Imagens e Textos Breves. Dentre os colaboradores da obra estão o deputado federal Arlindo Schnaglia (PT-SP), o ex-ministro do Planejamento e das Comunicações Paulo Bernardo, a deputada distrital Arlete Sampaio (PT), a deputada federal Érika Kokay (PT-DF), o ex-deputado federal Augusto Carvalho, o deputado federal João Maia (PL-RN), e o jornalista Davi Emerich.