"A Thami (Thamires) tinha 16 anos quando foi tirado o seu direito de vida, tão precocemente, por causa de uma irresponsabilidade", é dessa forma que Thaylene Rodrigues, 26 anos, descreve o acidente de trânsito sofrido por sua irmã, em 2009, em Valparaíso de Goiás. A tragédia aconteceu no ano seguinte à criação da Lei nº 11.705, conhecida como Lei Seca, que visa punir a alcoolemia ao volante. A triste coincidência é que Thamires morreu após ser atropelada por um motorista bêbado, segundo Thaylene. "Um policial, que não respeitou a faixa de pedestres, acabou avançando quando todos os outros carros haviam parado e a atropelou", relata.
Dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) mostram que, em 2008 — primeiro ano de implantação da Lei Seca —, 2.633 condutores foram flagrados dirigindo sob influência de álcool. No ano seguinte, em que ocorreu o trágico sinistro que vitimou Thamires, houve um salto para 6.793 autuações. Completando 14 anos desde a sua criação, a legislação, combinada a um conjunto de esforços, faz efeito. Uma comparação entre a quantidade de motoristas alcoolizados, os sinistros fatais e as vítimas mortas no trânsito, atesta isso (veja o infográfico).
Ferida aberta
Apesar da redução, infelizmente, ainda existem pessoas que insistem em se arriscar e acabam assumindo a direção de um veículo depois de ingerir bebida alcoólica (confira Palavra de Especialista). Em 17 de abril, domingo de Páscoa, o casal de ciclistas Hilberto Oliveira da Silva, 47, e Vera Lúcia da Cruz Sampaio, 43, morreu e outra pessoa ficou gravemente ferida após serem atingidos por um veículo em Santa Maria. De acordo com informações da Polícia Militar (PMDF), a motorista, de 36 anos, envolvida no atropelamento, dirigia sob efeito do álcool. Ela foi submetida ao teste, que constatou a alcoolemia de 0,62 miligramas de álcool por litro de ar expelido (mg/L).
Dois meses após a tragédia, João Victor Oliveira Silva, 22, filho de Hilberto, conta o que sentiu no momento em que soube. "É algo que nunca imaginamos que vá acontecer com a gente. O sentimento é de que poderia ser evitado. O que mais dói é isso", lamenta. Ele conta que a família ainda está se reestruturando para seguir com a vida. "Uns se apegam aos outros. Porém, é uma ferida que todos colocam uma proteção, mas, por baixo, ela ainda está grande, com toda certeza", garante. Para João, a sensação é de impunidade. "A pessoa que cometeu o sinistro foi solta antes mesmo do enterro do meu pai e de sua esposa. A impunidade é clara. A pessoa tira a vida dos nossos entes queridos e a justiça tortura aqueles que ficaram vivos com essa falta de punibilidade", reclama o filho do ciclista.
Vazio sentido
Quase um mês após a morte de Renan Pires de Araújo, 33, a família do operador de áudio e vídeo tenta seguir com a vida. Ele morreu depois de ser atingido por Jessivan Leal Araújo, 30 — que estava bêbado — na DF-489, sentido Gama, enquanto trafegava com sua motocicleta pela via. O autor foi capturado pela PMDF e preso em flagrante, por homicídio culposo e embriaguez ao volante. O teste do bafômetro acusou 0,40 mg/l. Resultado acima de 0,34 mg/L, que é considerado crime de trânsito.
No dia do enterro de Renan, seu pai, Joel Gonçalves de Araújo, 72, disse ao Correio que, apesar do sofrimento, a família — como forma de honrar a memória do jovem e tentar suavizar a tristeza — mantiveram clima de leveza durante o velório. "É sofrido, porque perdi um filho. Os comentários mostram o quanto ele é querido. Ele não quer (que a família sofra), eu sei porque carreguei ele nos braços e foi isso que ele aprendeu comigo, a ser alegre", relatou Joel, à época.
Hoje, Vilma Pires dos Santos, 59, mãe do motociclista, conta que a família ainda tenta seguir o que foi dito pelo pai de Renan. "A família sente o vazio, a falta. Era uma pessoa que em tudo ele estava presente, preenchia o espaço. Não dá para mensurar (a falta que ele faz)", afirma. "A ficha vem caindo a todo instante. A gente chora, sofre e é isso. Não sabemos se um dia essa ferida vai cicatrizar. Ele era meus braços, minhas pernas. Não é fácil falar dele assim", emociona-se Vilma.
Uma das porta-vozes da família desde o sinistro fatal, Elane Pires, 45, tia de Renan, considera que a identificação, prisão e indiciamento do autor do crime trouxe, inicialmente, uma sensação de alívio a todos. "Mas, sinceramente, pensar sobre a justiça numa situação dessa não é fácil. A grande questão aqui é a ação do motorista. A opção que ele fez ao pegar seu carro, após consumir bebida alcoólica e estar alterado por conta da embriaguez", lamenta.
Fiscalização
Para o diretor científico da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Flavio Adura, está muito bem documentado que o álcool está estreitamente ligado às mortes por sinistros de trânsito. "Mundialmente falando, cerca de 35 a 50% das sinistralidades nas vias se constata a presença de alcoolemia", alerta. "Mesmo com tendo consciência do antagonismo entre o consumo de álcool e a condução de veículos, muitos dirigem depois de beber, acreditando serem exceção à regra", comenta o diretor.
Segundo Flavio, para conduzir um veículo com segurança, o motorista deve ser capaz de realizar, sem hesitação, uma série contínua de movimentos com grande precisão e o álcool afeta negativamente essa segurança em dois aspectos: a sobrevivência e a performance. "A primeira considera impacto físico, quanto mais a pessoa tiver bebido, maior sua chance de morrer. Já a última, está ligada a redução da atenção, capacidade de avaliação crítica, além de prejudicar a percepção da velocidade e dos obstáculos da via", pontua. O diretor da Abramet completa afirmando que a Lei Seca é boa em sua essência e seus efeitos benéficos já são sentidos. "Mas urge que medidas de fiscalização sejam intensificadas e que toda a sociedade esteja unida no sentido de reprimir o binômio: beber e dirigir", atesta.