Envelhecer no DF

Mobilidade urbana precária é desafio para os idosos que vivem no DF

Na segunda reportagem da série, o Correio percorreu as ruas de Brasília e ouviu pessoas com 60 anos ou mais e especialistas sobre as dificuldades de locomoção nos espaços públicos

Adriana Bernardes
Pedro Marra
Juliana Oliveira
postado em 14/06/2022 05:52 / atualizado em 14/06/2022 09:32
 13/06/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF -   Dona Maria do Socorro Sousa Vale, idosa de 83 anos que dirige por Brasília. -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
13/06/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Dona Maria do Socorro Sousa Vale, idosa de 83 anos que dirige por Brasília. - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

O ir e vir é um direito universal, no entanto negligenciado quando se trata da população com 60 anos ou mais. Calçadas e paradas de ônibus quebradas ou inexistentes, altura dos degraus dos coletivos e alto custo da passagem estão entre as barreiras diárias. Na segunda reportagem da série Envelhecer no DF, o Correio percorreu a cidade para conhecer a realidade da população 60 no quesito mobilidade. São relatos invisíveis aos olhos da sociedade, que escancaram o atraso nas discussões e na implantação de políticas públicas voltadas a esse público que, em apenas 25 anos, vai superar o número de pessoas com menos de 15 pela primeira vez na história global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na última década, 517 idosos perderam a vida nas vias da capital, 29, só no último ano. Nessa segunda-feira (13/6), um homem de 60 anos foi socorrido em estado gravíssimo, após ser atropelado por um ônibus da Urbi Mobilidade Urbana. A vítima teve esmagamento do membro inferior direito. A permissionária responsável pela linha não se manifestou até o fechamento desta edição.

  • Morador do Cruzeiro Velho, Vicente Antônio dos Anjos, 83, pega ônibus na Rodoviária do Plano Piloto para ir à Ceilândia Centro . Pedro Marra/CB/D.A. Press
  • Moradora do Entorno, Luíza Pereira, 67, vem três vezes por semana ao Plano Piloto para levar a filha, Kelly, 37, ao Centro de Ensino Especial da 912 Sul Pedro Marra/CB/D.A. Press
  • 13/06/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Dona Maria do Socorro Sousa Vale, idosa de 83 anos que dirige por Brasília. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Casos como o de segunda-feira estão entre os desafios dos gestores públicos, que precisam articular diferentes áreas do governo para cumprir a lei e garantir a segurança dos variados segmentos da sociedade. Ferramentas não faltam. A Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável detalha todas as diretrizes a serem seguidas (leia Para saber mais).

Pedagoga com mestrado em educação e especialista em trânsito há 20 anos, Érica Elisa Nickel é precisa: a mobilidade urbana tem relação direta em como a cidade está organizada e com as políticas integradas voltadas para a pessoa idosa. Isso implica no acesso deles ao lazer, à cultura, ao esporte, aos serviços de cidadania (emissões de documentos), saúde, educação e ao transporte público. "A maioria dos municípios nem sequer colocou em prática a política de mobilidade. Não temos, no Brasil, uma política de subsídios para o transporte e isso resulta numa passagem muito cara. Temos uma quantidade imensa de idosos analfabetos ou com escolaridade muito baixa. Essas pessoas precisam continuar se desenvolvendo. Daqui há 10 anos, a força de trabalho não será predominantemente jovem-adulto", avalia.

Quem vive as influências de uma rotina de transporte público precário é a dona de casa Luíza Pereira, 67 anos, que, três vezes por semana, leva a filha com síndrome de Down, Kelly, 37, ao Centro de Ensino Especial 1, na 912 Sul. Elas vêm de Girassol, distrito de Cocalzinho de Goiás (GO), no Entorno do DF. As duas andam no chão de barro para pegar um ônibus, por volta das 5h45, na parada a 300 metros de casa, onde há asfalto. "Tenho que atravessar a BR-070, porque lá não tem passarela", relata. Luíza também criticou a demora do ônibus na Rodoviária do Plano Piloto, que chega a esperar mais de 30 minutos. "Não tem um banco para a gente sentar aqui", desabafa a moradora do Entorno.

Para a doutora em transportes pela Universidade de Brasília (UnB) Adriana Modesto — autora do artigo  O protagonismo do idoso na mobilidade urbana —, o papel da sociedade civil na inclusão dos idosos na realidade da mobilidade urbana passa pela lei (nº 5.984 de 2017). A norma determina que todos os assentos de transportes públicos do DF são preferenciais. "Em inúmeras oportunidades observo que as pessoas não cedem o lugar para os idosos", critica.

Educação

Enquanto esperava um ônibus para Ceilândia Centro, o morador do Cruzeiro Velho Vicente Antônio dos Anjos, 83, mencionou a falta de educação dos motoristas no tratamento aos passageiros. "A gente pergunta as coisas, em qual ponto parar, e eles não falam, porque são ignorantes com a população, principalmente com nós idosos", lamenta o aposentado. Ele tem carro, mas diz que prefere usar transporte público para economizar dinheiro com combustível. 

Apesar do aumento dos combustíveis, a empresária Maria do Socorro Sousa Vale, 84 anos, não abre mão de dirigir. Ela é uma das 542,3 mil motoristas com 60 anos ou mais no DF, conforme o Departamento de Trânsito do DF (Detran-DF). "Dirijo há 43 anos, e, graças a Deus, nunca me envolvi em nenhum acidente, mesmo indo com meu marido daqui para o Rio de Janeiro", conta. Em setembro do ano passado, ela  renovou a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e não pretende lagar o carro tão cedo.

Acolhimento

É justamente a necessidade de inclusão dessa parcela da população que é pretendida com o programa "Cidade Amiga da Pessoa Idosa". A iniciativa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) está criando uma rede de cidades em processo de adaptação para atender às necessidades urgentes de uma população que caminha rapidamente para uma virada de perfil demográfico. "Pensar em ações para o idoso não é uma questão romântica, é uma necessidade, do contrário, daqui a 20 anos teremos uma população idosa, doente e sem a ampliação dos serviços", adverte Bernardino Vitoy, oficial em Saúde Familiar e Comunitária da Opas.

Ele critica o olhar de inferioridade que muitas vezes a sociedade dispensa aos mais velhos e diz que essa postura empobrece o debate e tira o foco de ações simples, de baixo custo e que podem auxiliar na transição dos serviços públicos para lidar com a realidade de uma população envelhecida. "Nossa proposta é fazer com que as comunidades elaborem planos locais, que possam responder a essas necessidades e não precisa acontecer tudo repentinamente, as mudanças podem ser gradativas. Se começarmos agora nos antecipamos, ao invés de esperarmos que a realidade chegue com todas as dificuldades para a população", pondera.

A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) informou que as políticas públicas para os idosos são aquelas definidas no âmbito do transporte público coletivo, como as gratuidades, os assentos prioritários, os ônibus acessíveis, as acessibilidades e prioridades de embarque nas estações e terminais.

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Para saber mais

Há 10 anos e seis meses entrava em vigor, no Brasil, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/12). O Correio destaca, aqui, parte dos artigos 5º e 6º da legislação que traça as diretrizes que estados, municípios e o DF estão obrigados a cumprir para promover o acesso à cidade, aos serviços e ao lazer dos cidadãos.

Princípios

» Acessibilidade universal;

» Equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo;

» Eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano;

» Eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana.

Diretrizes

» Prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado;

» Integração entre os modos e os serviços de transporte urbano;

» Priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado;

» Garantia de sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros, de modo a preservar a continuidade, a universalidade e a modicidade tarifária do serviço.

TRÊS PERGUNTAS PARA

Érica Elisa Nickel, pedagoga com mestrado em Educação, especialista em trânsito há 20 anos, oito deles com foco em mobilidade urbana e idosos

Como a cidade precisa ser para acolher e proporcionar, de fato, mobilidade urbana para os idosos?

As cidades precisam ser repensadas para usufruir de todos os serviços o mais próximo possível de onde moram. Para isso, precisam de calçadas seguras, de segurança pública, iluminação das vias, agências bancárias nos seus bairros. Quando eles saem para resolver as questões da sua rotina, eles caminham, se cansam e precisam de mesinhas e banquinhos, no meio do caminho. Isso se transforma num espaço de convivência. Eles precisam de banheiros públicos, porque muitos, têm incontinência urinária. É preciso arborizar esses espaços, torná-los seguros.

E o transporte público, o que precisa mudar?

No Brasil e no mundo, idoso é a partir dos 60 anos. Mas por lei, o direito ao transporte gratuito é a partir dos 65 anos. Tem a questão da estrutura do veículo, com degrau muito alto. Nem todos os veículos têm elevador. Outra questão é o treinamento dos trabalhadores do transporte público. Nós, da Agência Nacional de Mobilidade, estamos fazendo isso. Teve aderência, mas é preciso mais.

De que forma a capacitação e a educação do idoso estão ligados à mobilidade urbana?

Muitos municípios oferecem o cartão idoso. Muitos ainda não têm acesso a esse benefício porque para conseguir, o acesso é digital, por meio de aplicativos. É preciso capacitá-los para que eles consigam ter acesso a esses benefícios sem depender de terceiros. Porque essa dependência, inclusive, gera violências diversas: a financeira, a psicológica e a física. Muitos idosos dirigiram a vida toda e, de repente, a família chega à conclusão de que ele não tem mais condições físicas de dirigir com segurança. Para muitos, tirar o carro é tirar a autonomia, é como perder um braço. Essa é a geração do carro, do veículo como status, do poder. Se esse idoso tem uma formação continuada, recebe orientações sobre o processo de envelhecimento, essas questões ficam mais fáceis de serem superadas. A gente, como sociedade, ainda não está acostumado a ver o idoso como regra e não mais como exceção. Precisamos mudar a forma de olhar as pessoas e a forma de atendê-las.

Vidas perdidas

Confira o número de mortos em sinistros de trânsito, com 60 anos ou mais. Entre 2011 e 2021, 517 pessoas foram vítimas na capital federal. No ano passado, houve 29 óbitos.

 

Ano Vítimas mortas

2011: 65

2012: 51

2013: 44

2014: 51

2015: 59

2016: 55

2017: 36

2018: 50

2019: 42

2020: 28

2021: 29

2022: 7*

*Até abril

Fonte: Detran/DF

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