"Vivemos um dos piores momentos da nossa história social", avalia o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak. Nascido em setembro de 1953, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, o ativista carrega em seu discurso o peso de anos de luta e de enfrentamento a ações contra os povos indígenas. Ao Correio, Ailton relatou episódios fortes e emocionantes, como o hábito dos Krenaks de cantar para o Rio Doce, mesmo após a tragédia do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, que encheu de rejeitos as águas do afluente. "O Rio Doce, que chamamos de Watu, é o nosso avô, a gente canta para ele, apesar de que ele, agora, esteja empossado de lama da mineração", diz, enquanto, com as batidas ritmadas dos pés, entoa o cântico repetido de "ooohh Watu".
Superando o sofrimento dos povos originários, Ailton demonstra força e sensatez em cada palavra. A luta é contínua pela proteção dos animais, das águas e das florestas. Em reconhecimento ao que ele representa, a Universidade de Brasília (UnB) entregou pela primeira vez a um indígena o título de doutor honoris causa. A homenagem, feita na quinta-feira, teve a aprovação do Conselho Universitário em dezembro de 2021, e a data foi escolhida em memória ao lançamento oficial da Aliança dos Povos da Floresta, que aconteceu em 1989, em São Paulo, sob a liderança de Ailton Krenak, da União das Nações Indígenas (UNI); e Chico Mendes, do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Reitora da UnB, Márcia Abrahão Moura destacou que é uma honra para a UnB entregar a condecoração no marco dos 60 anos da instituição. "É mais uma forma de festejar a nossa universidade. O nosso fundador Darcy Ribeiro, antropólogo e aliado dos povos indígenas, se orgulharia dessa decisão, que só fortalece a universidade humanista, diversa e democrática", frisou.
Qual o propulsor para se tornar esse símbolo de luta e resistência pelo direito dos povos indígenas?
Nasci na região chamada Vale do Rio Doce (sudeste de Minas Gerais). Lá, é o território dos Krenak, que são os antigos Botocudos, um apelido que os nossos bisavós tiveram. Caso olhe os livros de introdução à história do Brasil, vai ver que eles (os Botocudos) viviam na floresta do Rio Doce e não deixavam os brancos entrarem. Isso continuou até o século 20. Era uma ideia difundida pelo próprio Estado brasileiro, devido ao propósito que eles tinham, de que a floresta tinha a proteção de indígenas muito bravos e guerreiros. Enquanto isso, o governo dizimava a população nativa de outras regiões. No Vale, viviam cerca de 17 grupos familiares que se identificavam pelos rios onde eles estavam. Nasci em 1953, e já nasci com nossas famílias correndo entre os limites de fazenda, se instalando em novos territórios. Estávamos oprimidos. Como está acontecendo, agora, com os Xavante, que viviam, até as décadas de 1940 e 1950, no cerrado, na Serra do Roncador e em outros locais, e estão precisando fugir devido ao avanço dos grileiros, por exemplo. Nasci nesse período de fuga e, depois, participei das campanhas das Diretas Já, quando fazíamos mobilização pelo país afora, e eu andava nas aldeias difundindo esse ideal. Apesar de, hoje, o povo indígena estar em condições cada vez mais vergonhosas, eu continuo aqui, com esse contentamento enorme de estar vivo. Infelizmente, estamos em um país cada vez mais predado, e isso não se restringe às terras indígenas.
O senhor participou da Assembleia Constituinte, em 1987, que alcançou repercussão quando pintou o rosto com jenipapo ao discursar no plenário.
Penso que sou lembrado pelas novas gerações, inclusive de indígenas, pelo fato de ter feito aquela intervenção na Assembleia Nacional Constituinte, pintando o meu rosto de preto e usando um traje de branco, com paletó e gravata. E eu não ando assim, vestido a rigor, em um ambiente formal. Foi praticamente uma coincidência de propósito que me projetou para essas novas gerações como um símbolo de luta. E, de certa maneira, foi uma mudança do lugar social do povo indígena, que não era pensado pela sociedade que poderia ocupar. Isso foi importante, mostrar que poderíamos sim estar ali, como em qualquer outro lugar.
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A Constituinte desempenhou um papel importante para os povos indígenas?
Até a aprovação dela, a gente estava em vias de extinção. Havia um projeto político do Estado que era a chamada emancipação indígena, que significa, em uma canetada só, dizer que os povos acabaram, que eles são "brasileiros". O período que estamos vivendo hoje tem uma semelhança muito grande com trinta, quarenta anos atrás, quando o governo, no fim da ditadura, considerou a possibilidade de extinguir os indígenas por um ato formal. Recentemente, ouvimos (em um discurso de um político), por exemplo, que os indígenas são "quase iguais" às outras pessoas. Essa frase é obscura e cheia de truque, porque se você é quase igual ao outro, você não é ninguém. Quando a gente, indígena, se tornar quase igual, nós não vamos ser ninguém. A maldade do Estado brasileiro é tentar acabar conosco como se fosse uma obsessão.
O Marco Temporal passou por idas e vindas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal. Qual a análise do senhor?
Essa questão é um mal do Estado brasileiro, porque toda vez que a gente se distrai, ele tenta pegar algo do nosso povo. Olhamos, lá atrás, a tentativa de emancipação e, logo depois, veio o Marco Temporal, as tentativas de negar os direitos sociais históricos dos povos indígenas, os casos de violência. O fato é que o Estado tem uma vocação genocida. Ele é colonial, nasceu matando e roubando a terra dos índios. Você acha que, agora, ele ficaria bonzinho?
Qual seria o caminho para mudar isso?
País vizinho ao nosso, o Chile está liderando o debate da nova Constituição Plurinacional, que é muito diferente da Constituinte do Brasil. A Constituição que fizemos, aqui, é nos moldes colonial, ela não altera a superestrutura do Estado, a operação interna da República, continua funcionando no mesmo jogo. Lá no Chile, o que acontece é a refundação do Estado, se tivéssemos isso, aqui, o Brasil teria respeitado a integridade histórica e originária dos indígenas sem ferir nenhum de nós.
Além das mudanças quanto ao funcionamento do próprio governo, há uma necessidade de transformação da sociedade. O que, com mais urgência, precisa mudar?
Talvez, a gente esteja vivendo, hoje, um dos piores momentos da nossa história social. Não apenas para o povo indígena, mas de intolerância e violência racial como um todo. Na última quinta-feira, eu escutei de uma mãe, me contando que a filha dela, de 6 anos, surpreendeu a todos quando, na escola, a menina foi liberada pela professora de usar o uniforme porque, no dia seguinte, poderia ir "fantasiada de índio". E a estudante então perguntou: "índio é uma fantasia?". A minha esperança é justamente que a geração dela consiga mudar a maneira ordinária como a sociedade brasileira enxerga os povos indígenas.
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Qual a importância de receber o título de doutor hornoris causa da UnB?
Como vivemos em um país cheio de símbolos, para uma pessoa que tem a biografia como a minha, esse título concede algum tipo de proteção social. E é interessante a gente observar quem é que precisa de proteção social neste mundo que vivemos. São pessoas que vivem em desvantagens, que não conseguem se proteger sozinhas da violência do Estado.
Onde vive o povo Krenak?
Continuamos no mesmo lugar, perto do Rio Doce. O Rio Doce, o Watu, é o nosso avô, a gente canta para ele, apesar de que, agora, esteja empossado de lama da mineração. Evocamos a floresta, falamos com as montanhas. A gente nunca saiu de lá, e os nossos inimigos não venceram. Somos 130 famílias, uma população de aproximadamente 500 pessoas que vivem à margem esquerda do rio. Dependemos do envio de carros-pipas para ter água. Mas continuamos lutando.