Manter o equilíbrio entre desenvolvimento e a preservação do meio ambiente é o segredo para a garantia da qualidade de vida de uma população. No Distrito Federal, 88% dos 5.760.784km² de área correspondem a unidades de conservação (UCs), segundo dados do Instituto Cerrados. Entre os mais importantes focos de preservação do bioma na capital do país está o Parque Nacional de Brasília, onde se concentram de 22% a 29% da água consumida pelos brasilienses.
Atualmente, o DF tem 86 UCs geridas pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram) e quatro sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio — leia Unidades de conservação). Apesar de a maior parte do território ser formada por essas áreas protegidas, só 11% delas requerem preservação integral. O restante é considerado de uso sustentável, o que permite flexibilidade nas ocupações. Ainda assim, embora a quantidade delas pareça suficiente, nem todas estão resguardadas da intervenção humana.
Diretor Executivo do Instituto Cerrados, Yuri Salmona observa que os cenários são bem diferentes. "Temos todo tipo de realidade: desde o Parque Nacional de Brasília, uma unidade muito bem protegida que é uma das unidades com o maior número de servidores por hectare; e também temos a APA (Área de Proteção Ambiental) do Descoberto, que abastece de 52% a 65% da água da capital federal e sofre com o avanço dos chacareiros. Já Águas Emendadas (em Planaltina) tem um valor ecossistêmico altíssimo, é extremamente isolada e protegida. Em outros locais, contudo, as regiões de conservação ficam muito perto do perímetro urbano, sem uma zona de amortecimento", compara.
Yuri salienta que as UCs exercem um papel fundamental para o provimento de água, a regulação do clima e a manutenção dos nutrientes do solo. "Nos meses em que não chove, por exemplo, continuamos com disponibilidade hídrica por causa dos aquíferos, dos fluxos subterrâneos armazenados e canalizados pelas regiões que têm vegetação nativa", explica. Ele acrescenta que um dos principais desafios enfrentados, hoje, é a falta de intersecção entre as áreas protegidas: "Para a biodiversidade, para que perpetuem a espécie, é importante que elas possam deixar uma unidade de conservação e ir para outra, pois isso permite o encontro grupos animais de locais diferentes. As aves conseguem driblar isso, mas outras espécies, não".
Espécies
Professora de ciência biológica na Universidade Católica de Brasília, Ana Moreira Martins afirma que dois pontos de alerta quanto aos riscos à proteção ambiental envolvem o desmatamento e a expansão urbana. "O fogo é uma das ameaças e, no período de seca, o DF entra em um período de alerta quanto a isso, mas as brigadas do ICMBio, Ibram e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) fazem um ótimo trabalho de prevenção e controle, para minimizar os danos de queimadas muito extensas", avalia a doutora em ecologia.
Ana observa que os dois problemas costumam estar associados, o que gera perdas importantes à biodiversidade e de serviços ecossistêmicos. "Por exemplo: há projetos de expansão próximos ao Taquari, que faz limite com a área rural do Córrego do Urubu e outras áreas verdes onde existem fauna silvestre e nascentes. Pensando na crise hídrica que vivemos recentemente, desmatar só agrava a situação, pois o cerrado é o berço das águas e ele protege nossos lençóis freáticos", destaca.
Doutor em zoologia e professor da Universidade de Brasília, Bráulio Dias acrescenta um aspecto relevante à discussão: diversas espécies vulneráveis encontram refúgio em áreas de preservação ambiental do DF. "Embora seja raro, temos a presença de onças-pintadas, que estão muito ameaçadas. Elas ficam nas regiões mais montanhosas, de gruta calcária, na parte norte do Parque Nacional de Brasília — conhecida como Buracão. Há, também, onças-pardas, jaguatiricas, lobos-guará e diversos outros animais, como o pirá-brasília, que vivem em áreas menores", elenca.
Saiba Mais
Nos mais de 42 mil hectares do Parque Nacional de Brasília, a Água Mineral, constam registros de dois avistamentos do peixe pirá-brasília, enquanto, na Estação Águas Emendadas, encontraram um lobo-guará. No entanto, com o avanço do desmatamento e da conversão dos ecossistemas naturais para ampliação dos processos urbanos, essas espécies perdem espaço de sobrevivência. "Há necessidade de equilibrar o desenvolvimento com iniciativas de conservação. Senão, ficaremos sem natureza para manter os serviços ecossistêmicos, como produção (natural) de água limpa, de ar puro, a fertilização do solo e a polinização das plantas", frisa Bráulio.
Além disso, algumas das áreas protegidas no DF são fundamentais para a biosfera. Elas incluem o Parque Nacional; a Estação Ecológica de Águas Emendadas, em Planaltina; assim como as APAs Gama e Cabeça de Veado. Uma parte das demais, apesar de serem menores, contribuem com a preservação de espécies e dos lençóis freáticos; a outra parcela tem potencial para ser restaurada, ao mesmo tempo em que permite a visitação do público.
Imbróglio com terras em Sobradinho
A questão da moradia e da proteção de reservas é motivo de constantes embates entre a população, o Estado e ambientalistas. Recentemente, os ministérios públicos Federal (MPF) e do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) emitiram recomendação contra a transferência do território que compõe as áreas das fazendas Contagem de São João e Sobradinho — também conhecida como Paranoazinho. O documento defende que as terras não sejam transferidas da União para a Agência de Desenvolvimento Brasília do DF (Terracap), após acordo entre as duas partes.
A justificativa é de que as duas fazendas ficam em áreas de proteção integral, com uso de recursos naturais admitido apenas de maneira indireta — quando não envolve consumo, coleta ou dano. Advogado e professor especialista em regularização fundiária, Emerson Caetano afirma que esses tipos de territórios não podem ser objeto de transferência para regularização urbana. "É necessário, inclusive, que haja trechos de amortecimento para que um região de proteção não seja interrompida e, logo depois, comece uma cidade, pois isso também afeta a questão ambiental", comenta.
O advogado lembra que a Lei Federal nº 9.985/2000 impede a transferência de terras em áreas integralmente protegidas e, em nível distrital, a Lei Complementar nº 986/2021 proíbe a regularização urbana nesses locais e em parques ecológicos. O Correio visitou algumas das regiões afetadas pelo acordo entre União e Terracap, em Sobradinho. Na entrada da fazenda homônima, uma placa avisa: "Proibido, neste parcelamento, a realização de quaisquer obras de infraestrutura, edificações, exploração de recursos naturais e supressão de vegetação".
As áreas de transferência envolvem setores conhecidos como Nova Colina, Dorothy Stang, Uberaba, Novo Oriente, Petrópolis e respectivos arredores. Questionadas pela reportagem sobre o assunto, a Secretaria de Patrimônio da União não se posicionou, e a Procuradoria-Geral do Distrito Federal informou que, "no momento, não se manifestará". A Terracap informou que as terras pertencem ao Distrito Federal e que o termo de conciliação assinado em março corrige um problema da década de 1970, à época da criação da agência.
"(As titularidades) foram transferidas, para compor o capital social da Terracap, as Fazendas Contagem de São João, Sálvia, Brejo ou Torto e Sobradinho. Para cumprimento dos órgãos de controle externos e internos, tanto da União quanto do GDF, esse termo foi acordado, não restando dúvidas de que essas áreas pertencem à agência há cinco décadas, restando (homologar) o registro cartorial, que, por uma série de motivos, não foi realizado", justificou a empresa pública, em nota.
Riscos
Especialista em direito administrativo, Wilson Sahade destaca que grande parte das áreas de proteção e preservação ambiental do DF continuam sem delimitação. Ele afirma que, em 2019, uma auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal mostrou que cerca de 75% dessas regiões não tinham demarcação. As consequências levam a ocupações irregulares. “Elas também ocorrem devido à ausência, ao longo dos anos, de uma efetiva política pública de habitação. Com isso, locais que deveriam ser protegidos são usados e ficam sujeitos a danos ambientais irreversíveis”, alerta.
No caso dos moradores das áreas com titularidade transferida, o advogado ressalta que há duas vertentes passíveis de análise: a da proteção ambiental, com delimitação urgente das áreas exigida em lei federal, e a da regularização fundiária, prevista na Constituição Federal. “Tendo em vista o direito fundamental à moradia e, de outro lado, o que a ocupação massiva desordenada poderá provocar à natureza — inclusive desastres. Logo, é importante que se promova, primeiro, a demarcação das regiões de proteção, evitando a ocupação de terras que não comportam isso e deveriam ser preservadas, além da supressão de fauna e flora nativas”, conclui.