Compenetrados, os estudantes do Centro Educacional (CED) nº1 do Guará, sentados na quadra de esporte da unidade, ouvem os relatos da ativista e escritora Preta Ferreira sobre os momentos vivenciados por ela em junho de 2019, quando foi presa injustamente. O depoimento dos dias de cárcere estão no livro Minha Carne: Diário de uma prisão. Preta foi a primeira escritora que participa da 4ª edição do projeto Diálogos Contemporâneos a visitar escolas do Distrito Federal, nessa segunda-feira (2/5). Nesta e na próxima semana, mais quatro unidades de ensino receberão autores brasileiros para debater obras com os alunos. A iniciativa é promovida pela Associação Amigos do Cinema e da Cultura (AACIC). O diferencial, desta vez, é que os encontros são realizados nos espaços escolares, não somente em museus e teatros, como nas versões anteriores.
Estudante do 2º ano do ensino médio, Yarlla Tavares, 16 anos, avalia a experiência como única. "Para a gente, mulher preta, o livro dela trouxe mais coragem. É incrível ler como ela precisou encarar tudo que passou, os desafios relatados", conta a adolescente. Diretor do CED 1 do Guará, Paulo Cesar Rocha ressalta que a visita de Preta Ferreira é uma chande de aprendizado "riquíssima" para os alunos. "Eles estão tendo essa oportunidade de ver alguém que fala sobre uma realidade deles. Estou particularmente impressionado, inclusive, com as questões profundas que eles (estudantes) estão perguntando para a Preta", afirma.
Coordenadora pedagógica, Andréia Moreira explica que o CED 1 do Guará, desde o ano passado, decidiu trabalhar a questão racial durante todo o ano letivo. "Percebemos que somente o Dia da Consciência Negra não era suficiente para abordar essa temática, por isso, os professores acharam adequado que fosse algo recorrente. Quando surgiu a oportunidade de escolher um escritor para o escola, pedimos justamente que pudesse ser alguém que tratasse essa temática racial", detalha a educadora.
"Não criem super heróis, criem revolucionários com nível superior, porque o sistema não tem força contra a educação", escreveu a ativista no período em que estava presa. O trecho foi lido por professoras durante o debate. No diário, Preta descreve como a prisão causa mudanças no temperamento. "Havia momentos, em que eu estava com raiva por ter sido presa injustamente, que estava triste e com ódio do nosso sistema", disse aos alunos.
Perspectivas
A Associação Amigos do Cinema e da Cultura (AACIC) pondera que a produção literária do Brasil é rica e diversificada, no entanto, o baixo índice de leitura acende um alerta para a necessidade de meios de incentivo para o público. Coordenadora de Projetos da AACIC, Dulcineia Miranda salienta que promover o interesse ao livro e à cultura, usando do contato próximo dos alunos com os autores, é algo importante. "Condicionar esse encontro entre as escolas e os artistas e permitir essa educação dos livros nos espaços de ensino é um diferencial. Está sendo a primeira edição com esses encontros sendo realizados em escolas, antes, os encontros eram feitos no Museu da República, teatros e outros espaços culturais. Mas, agora, com o sucesso dessa relação, a expectativa é de que as próximas edições continuem com essa parceria. E não somente em escolas públicas, queremos levar o projeto para as unidades particulares", adianta Dulcineia.
Para a estudante Júlia de Freitas, 16, do 2º ano do ensino médio, o que mais a surpreendeu foi a violência arbitrária sofrida pela escritora. "Acho a Preta uma mulher muito forte. O que ela passou na prisão, não somente o que ela relata dela, mas também das outras mulheres presas é muito doloroso. Fiquei pensando que, mesmo ela tendo tanto apoio das pessoas aqui do lado de fora, ficou tantos dias na cadeia injustamente. Se fosse outra pessoa, quanto tempo teria ficado? A injustiça me impactou muito", reforça a jovem.
Do 1º ano do ensino médico, Luiz Filipe Mesquita, 15, se surpreendeu com o conteúdo do livro. "Nunca tinha lido algo da vida do próprio autor, e o jeito que a Preta escreve é diferente. O que mais mexeu comigo, inclusive, foram os momentos na prisão. Além da identificação, eu sou negro, e tem essa questão do que ela pensa já ser o que eu penso", completa o estudante.
"Chave para abrir prisões"
Presa em 24 de junho de 2019, Preta Ferreira ficou em cárcere até 10 de outubro de 2019. Ao Correio ela relatou o choque de se ver frente a frente com o racismo estrutural na aplicação da lei. "Sempre lutei contra as injustiças, essa sempre foi a minha causa. E de repente, eu estava cara a cara em uma prisão injusta. Foi por isso que decidi escrever o livro, para falar sobre essa armadilha do sistema montada contra a população preta. O livro foi, de certa forma, um grito pela liberdade", afirma a ativista.
Com os jovens, ela diz que o principal foco é expor a capacidade de atuação na sociedade que eles possuem. "Mostrar para eles que podem escrever a sua narrativa, que eles têm direitos constitucionais e potencial. Meu objetivo é ser uma possível chave para abrir as grades que aprisionam as pessoas; e não apenas as grades físicas, mas as outras grades invisíveis também. E fazer isso pela arte é importante, porque ela tem esse poder grande de se comunicar com todos, de ser uma linguagem social", define Preta Ferreira.
Com os estudantes, a escritora ressalta que há um intercâmbio de conhecimentos e vivências. "É um momento que tiramos muito da experiência dos jovens. Politicamente, inclusive, precisamos aprender com eles, com a linguagem que usam, com a forma que utilizam as redes sociais. Isso é fundamental, porque a política, agora, tem essa cara jovem", pondera, Preta Ferreira.
Em sala de aula
A professora de língua portuguesa Anna Alice Nunes foi a responsável por trabalhar o livro Minha Carne: Diário de uma prisão com os estudantes do CED 1 do Guará. "Levei os alunos para a biblioteca, li trechos, e disponibilizamos que pegassem emprestado a obra para lerem em casa. E eles demonstraram muito interesse, principalmente, porque são temas que conversam com a realidade deles, pela questão racial, da vulnerabilidade e da violência contra a mulher, por exemplo. A maior parte dos responsáveis pelos alunos são mães, avós e tias, devido a esse abandono paterno, há casos de feminicídio e violência doméstica. Então, é algo que está muito próximo com o que os alunos vivenciam", atesta.
Ao longo da semana, os alunos continuarão debatendo o livro, e, depois, o tema será inserido dentro da realidade escolar. "A obra aborda diversas temáticas, como o racismo, a mulher e a questão prisional. Mas, para o cenário escolar, eles vão fazer uma redação sobre o racismo recreativo, porque alguns acreditam que o preconceito é algo do passado, mas cometem brincadeiras que são preconceituosas sem perceber. Por isso, o debate será voltado para essa conscientização", antecipa a professora.