COTAS

Pioneira da inclusão racial, professora ajudou a democratizar a UnB

Maria da Glória Moura, 86 anos, transformou a vida no passaporte para inclusão de afrodescendentes na Universidade de Brasília. Ela atuou, ainda, em nome do direito constitucional de reconhecimento das terras dos povos quilombolas

Nos primeiros anos escolares, a primeira figura professoral tende a ser feminina. Entretanto, quando falamos dos grandes nomes da pedagogia, estranhamente as principais referências são masculinas. O Brasil é pródigo na formação de pensadores reconhecidos mundialmente, como Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, mas também foi e é o caldo cultural que forma mulheres de destaque no mundo acadêmico, como visto ao longo das últimas reportagens que abordaram importantes personagens nas trajetórias femininas nos 60 anos da Universidade de Brasília, como a doutora em antropologia Eliane Boroponepa Monzilar, da etnia Umutina, e a jornalista belga Yvonne Jean, radicada no Brasil. Hoje, é dia de conhecer mais um expoente de vanguarda da história da instituição: a professora Glória Moura, 86 anos.

Professora aposentada da Faculdade de Educação da UnB, Glória Moura é referência na luta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Nascida no Rio de Janeiro, filha de pai negro, mãe mestiça e neta de indígena, muito cedo, ela compreendeu a honra e o peso da própria ancestralidade. Tal percepção permitiu que ela trilhasse um caminho de militância pelo reconhecimento na educação das raízes e tradições africanas, integrantes da formação nacional, mas que passaram por um duro processo de marginalização.

Pioneira na luta pela inclusão de negros na Universidade, Glória conta que muito da sua motivação veio de fora dos corredores da instituição de ensino: surgiu dos insistentes "nãos" ouvidos ao longo de sua trajetória como mulher e negra.

"Quando eu era menina, eu não entendia porque não podia ser anjo na escola. Estudei em um colégio de freira, e tinha a coroação de Nossa Senhora, que acontecia todo mês de maio. Mas eu não podia sequer pensar na possibilidade de participar, porque era negra", recorda. Segundo a professora, os personagens ficavam a cargo das colegas loiras e brancas. "A gente não tinha muito direito de questionar ou indagar naquela época", lembra.

O direito de contestar e a rejeição pela cor da pele e pelo tipo de cabelo marcaram a infância de Glória, que, anos depois, transformou as lembranças em combustível no combate ao racismo. Em 1962 ela concluiu a graduação em pedagogia pela Universidade Federal Fluminense. Mais de uma década depois, em 1976, ela foi contemplada com uma bolsa de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para ser desenvolvida na UnB.

Naquela época, ela já era mãe de três filhas — mais tarde viria a ter a quarta —, mas não se intimidou e fez as malas rumo ao Planalto Central. No Distrito Federal, iniciou a pós-graduação em Planejamento Educacional na Faculdade de Educação. "Eu cheguei numa época turbulenta, tinham invadido e estava tudo muito confuso", diz. A chegada na instituição que era vista como verdadeira "terra prometida", pois nasceu com o espírito de vanguarda da ciência, foi marcada por surpresas e desencantos. O primeiro choque foi constatar que na UnB, não havia negros. "Não falavam sobre a questão racial, que era um erro muito grande", recorda.

Militância

Em meio à repressão, Glória iniciou a militância pela causa racial. Apesar da dificuldade em manter o debate étnico, a professora se mobilizava entre estudantes. Após a redemocratização, em 1985, a pauta passou a ser constantemente incluída em conversas da comunidade universitária, através da criação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), que permitiu a inserção da temática racial na Universidade. Dois anos depois, a instituição fundou o Centro de Estudos da Constituinte, para debater sobre a Constituição Federal de 1988. Glória era a única negra do grupo, que apresentou propostas ao Congresso. O trabalho permitiu a promulgação do artigo 68: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

A partir desse momento, Glória se aprofundou nos estudos a respeito das comunidades quilombolas. Entre 1993 e 1997, ela se licenciou do cargo de professora da Faculdade de Educação da UnB e iniciou o doutorado, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), focada justamente nos quilombos contemporâneos. Desde então, ela fez grandes contribuições à luta racial: criou o primeiro livro didático para crianças quilombolas, em parceria com o Ministério da Educação; retomou os trabalhos junto ao Neab e, à frente do grupo, participa da implantação de um modelo de cotas para a entrada de estudantes negros na UnB.

Para a professora, a implantação da política foi de fundamental importância. "As marcas da escravidão foram tão profundas que, mesmo nas escolas, onde estudamos sobre isso e há publicações do assunto, há, ainda, rejeição ao aluno negro. Isso desqualifica o estudante. Por isso, precisamos trabalhar esses temas", reitera. Segundo Glória, a principal forma de combater a discriminação racial é através da educação. "Há pessoas que não querem saber desse debate, mas precisamos incentivar a leitura, para combater a ignorância, o preconceito. As escolas devem levar em consideração a identidade do aluno, seja negro, indígena, quilombola, sempre levando em consideração que alguns têm oportunidade e outros não. Precisamos abrir as portas das escolas para todos", completa.

Desafios

Apesar das conquistas, Glória vê um longo caminho. "A própria sociedade está mais alerta para a causa. Há um movimento para se chegar à igualdade. É um processo", explica. Para a professora, o movimento em defesa da igualdade racial cresce à medida que mais pessoas reconhecem sua história e seu papel dentro da sociedade. "Somos um país miscigenado. Muitos aqui não se reconhecem negros, outros são e se dizem mulatos. E muitos trabalham com a questão racial. Temos visto um crescimento (dessa autoidentificação), e isso é importante, inclusive, para a identidade brasileira, que está marcada por uma pluralidade de raças e culturas", diz.

A professora, que antes sonhava em ser anjo na escola, hoje sonha com o dia em que a desigualdade chegará ao fim. "As pessoas ainda veem pelo lado do estigma. Participamos de um mundo que deve pregar a igualdade, não podem existir essas diferenças. Para isso, precisamos educar nossos jovens e dar acesso à educação."

 

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 25/04/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Perfis de Mulheres da UnB. Mulheres de influência na academia, professora Glória Moura, primeira mulher a tratar de temas raciais dentro da academia.
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 25/04/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Perfis de Mulheres da UnB. Mulheres de influência na academia, professora Glória Moura, primeira mulher a tratar de temas raciais dentro da academia.
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - Nascida no Rio de Janeiro, filha de pai negro, mãe mestiça e neta de indígena, muito cedo, ela compreendeu a honra e o peso da própria ancestralidade
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 25/04/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Perfis de Mulheres da UnB. Mulheres de influência na academia, professora Glória Moura, primeira mulher a tratar de temas raciais dentro da academia.