O Distrito Federal registrou, em 2021, o segundo maior número de mortes por acidentes de trabalho em 20 anos. No ano passado, foram 44 óbitos, resultado inferior somente ao de 2008, período em que 47 trabalhadores perderam a vida em função de incidentes laborais. Na comparação com 2020, quando 27 brasilienses morreram em casos do tipo, houve crescimento de 63%. O total de ocorrências do gênero no DF em 2021 foi de 6.375, o sétimo menor valor para a série histórica, iniciada em 2002, apesar do alto número de vítimas. Em 2020, foram 5.039 incidentes (veja gráfico).
A fiscalização de todas as atividades relacionadas à segurança e saúde laboral no território brasileiro é de competência do Ministério do Trabalho e Previdência, ligado ao governo federal. A supervisão é feita por meio das superintendências regionais do trabalho e dos auditores-fiscais do trabalho. No DF, os setores econômicos com mais notificações de acidentes de trabalho são as atividades de atendimento hospitalar (13%), serviços de correio (6%) e construção de edifícios (5%). Fratura (17%), corte (16%) e contusão(14%) são as lesões mais frequentes. As partes do corpo mais atingidas são os dedos (19%), os pés (9%), as mãos (6%), os joelhos (6%) e os tornozelos (6%).
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Além das perdas irreparáveis, o descaso gera prejuízos financeiros. Apenas no ano passado, os custos previdenciários oriundos de acidentes laborais, entre aposentadorias, auxílios e pensões, chegaram a R$ 198,4 milhões na capital do país. Os gastos do mesmo tipo do Brasil alcançaram R$ 14,5 bilhões em 2021. O país somou, em 2021, 571.786 acidentes de trabalho, o oitavo menor valor desde 2002. Desses, 2.487 foram com morte — maior resultado desde 2015.
São Paulo liderou a quantidade de doenças laborais em 2021 e concentrou 35% das ocorrências. Em seguida, estão Minas Gerais (11%), Paraná (8%), Rio Grande do Sul (8%) e Santa Catarina (7%). O DF ocupa a 15ª posição. A lista dos incidentes com mortes também é encabeçada por São Paulo (570), seguido de Minas Gerais (272), Paraná (224), Santa Catarina (166) e Rio Grande do Sul (160). O DF também está em 15º no ranking dos óbitos. Os números são do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, plataforma do Ministério Público do Trabalho (MPT), em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Relatos
Especialista em processos do tipo, a advogada Paula Caroline Reis Mota dos Santos observou nitidamente o crescimento das demandas referentes a doenças ocupacionais em 2021, no escritório em que comanda. "Em média, o aumento foi de 25%, comparado com 2020", estima a advogada. Paula Caroline relata que a maioria dos casos são acidentes físicos, como dores nas costas decorrentes de traumas repetidos, postura inadequada mantida por horas, aplicação de força intensa ou posição inadequada.
"O dano físico sempre vem acompanhado de adoecimento mental, decorrente da dificuldade de se adaptar à nova realidade, no caso de perder partes do corpo, ou por não ter mais condições de gerir o próprio sustento", pondera. "O que mais chama a atenção é uma mesma empresa figurar em mais de dois ou três processos simultaneamente", choca-se. "É uma realidade triste e lamentável", condena a advogada.
Mauro (nome fictício), infelizmente, é uma das vítimas submetidas a dois acidentes de trabalho na mesma firma, pela falta de condições adequadas para o exercício das operações. Em um intervalo de menos de um ano, entre 2019 e 2020, Mauro machucou gravemente a perna direita após cair em uma vala, quase precisou amputar o membro e hoje anda mancando, além de ter desenvolvido hérnia por levantamento de peso excessivo sem o uso de cinta. A reação da empresa, do ramo de impermeabilização, não poderia ter sido mais absurda:o trabalhador, que tinha a carteira assinada pela companhia, foi demitido após o segundo acidente, por não ter mais condições de desempenhar sua função.
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Desde então, Mauro, pai de dois filhos, faz "bicos" leves para garantir o sustento da família. Ele afirma que nenhuma outra empresa quer contratá-lo mais. "Estava para servir à empresa, mas me jogaram de lado e não pagaram nada, me ignoraram. Fico muito chateado. Espero que outros trabalhadores não passem por isso, cheguei a passar fome", desabafa a vítima. Antes dos acidentes laborais, Mauro pedalava, andava a cavalo, jogava futebol e corria. Hoje, não consegue sequer limpar a casa. O colaborador está com uma ação em curso contra a empresa na Justiça. A firma se recusa a entrar em acordo com ele nem propõe indenizá-lo.
Causas
Carolina Mercante, procuradora do MPT, relaciona os dados alarmantes à não priorização da saúde e segurança dos trabalhadores. "Há pouco investimento empresarial e pouca fiscalização de rotina. Estimulamos esse tipo de comodismo, porque a empresa sabe que não será supervisionada. O DF está muito abaixo do que deveria", lamenta a procuradora, que confirma o crescimento dos casos em 2021. "De fato, recebemos muitas denúncias no ano passado sobre acidentes fatais", observa.
Ela explica que, de acordo com a legislação brasileira, os empregadores têm de seguir programas médicos e de prevenção de acidentes, de vigência anual, com cronograma de ações que precisam ser tomadas para o ano em questão. Nos 12 meses seguintes, a companhia deve emitir relatórios sobre as medidas implementadas. E é aí que reside um dos maiores problemas, segundo Carolina Mercante. "Muitas empresas sequer executam os programas", expõe a procuradora, atribuindo a negligência à falta de supervisão.
O desleixo das companhias perpassa o cenário anterior às ocorrências. "Quando os acidentes já aconteceram, a empresa tem de emitir o CAT (Comunicado de Acidente de Trabalho), o que, muitas vezes, não é feito. É a partir do CAT que conseguimos ter números, saber os setores com mais casos, as partes do corpo mais atingidas e as causas, para elaborar políticas de prevenção", elenca a especialista. A falta de registro do comunicado gera distorção no número efetivo de acidentes. Ao menos 874 acidentes de trabalho ocorridos em 2021 no DF não foram contabilizados. No mesmo ano, a estimativa de subnotificação do Brasil foi de 114.525 incidentes.
Em abril de 2020, Sérgio (nome fictício) estava descarregando um caminhão Munck, veículo com guindaste, e, ao desamarrar uma fita que segurava os materiais, uma barra de aço caiu sobre o indicador da mão esquerda do trabalhador, quebrando-o em três pontos. Ele conta que, no momento do acidente, a médica do trabalho afirmou que o corte tinha sido somente superficial e apenas enfaixou o dedo de Sérgio, que seguiu desempenhando sua atividade. Ao fim do dia, o colaborador foi ao hospital, onde foi constatado que havia sofrido uma fratura exposta. Ele passou por cirurgia e precisou ficar afastado do serviço por oito meses.
O trabalhador perdeu 40% dos movimentos do dedo atingido. Tempos depois do acidente com a mão, ele ficou com a coluna comprometida por conta do excesso de peso carregado nos serviços. Para receber indenização da empresa, da área de construção civil, Sérgio entrou com ação trabalhista na Justiça, pelos dois episódios, e pediu R$ 59 mil. A firma entrou com recurso contra o valor, mas não sugeriu outra quantia. Sérgio, hoje, vive de "bicos". "Eles não nos dão equipamentos de proteção e tentam nos culpar pelos acidentes, dizendo que deveríamos ter comprado a cinta (para carregar peso) e não executar o trabalho com pressa", conta Sérgio, que tem mais dois colegas, da mesma empresa, também vítimas de acidentes laborais.
Fiscalização
Para Paulo Henrique Blair de Oliveira, professor de direito do trabalho e direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB), a situação do DF reflete o momento nacional. "Estamos, desde 2018 para cá, em um contexto de desmobilização da fiscalização trabalhista. Durante certo período, o Ministério do Trabalho, inclusive, deixou de existir, passando a ser apenas uma secretaria especial do Ministério da Economia (em janeiro de 2019. Recriado novamente em julho de 2021)", analisa o professor.
O especialista aponta que, além do enfraquecimento da supervisão, o DF enfrenta falta de investimentos em medidas e estrutura de fiscalização. O Ministério do Trabalho e Previdência informou ao Correio que há 14 auditores atuando na segurança e saúde no trabalho na capital do país. Quanto aos recursos, a pasta informou que não há recortes regionais. No Brasil, os valores para inspeção do trabalho totalizaram R$ 23,3 milhões em 2021. A previsão para 2022 é de R$ 30,4 milhões.
Paulo Henrique ressalta a dificuldade que os fiscalizadores encontram na hora de executar as normas. "Nesse contexto de mudança de legislação, não há possibilidade — a não ser em casos extremos — de interditar ou multar um local na primeira visita. É preciso dar um prazo e retornar ao fim desse período para checar se a recomendação foi implementada. É uma boa medida em infrações muito leves. Uma coisa é dar prazo para adequação por falta de relógio de ponto, mas falta de segurança em andaimes é muito mais grave", exemplifica o professor.
O pesquisador atribui, ainda, o crescimento dos óbitos por acidentes de trabalho, em parte, à pandemia da covid-19. "Parte dos setores de apoio administrativo das empresas migrou para o teletrabalho, justamente a parte responsável pela supervisão interna do cumprimento dessas medidas de segurança. Ao desmobilizar um escritório administrativo e dispersá-lo na casa de dezenas de pessoas, leva-se um tempo para que funcione tão bem quanto antes", defende o especialista. Em 2019, antes da emergência sanitária, foram 22 óbitos e 7.512 acidentes de trabalho.
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Definição
De acordo com o INSS, são episódios ocorridos pelo exercício do trabalho, provocando lesão corporal ou perturbação funcional, permanente ou temporária, que cause a morte, a perda ou a redução da capacidade para o serviço. Equiparam-se ao acidente do trabalho: casos ligados ao trabalho que, embora não tenham sido a causa única, contribuíram diretamente para a ocorrência da lesão; acidentes sofridos no local e no horário de serviço; doença proveniente de contaminação acidental no exercício da atividade; e acidente sofrido a serviço da empresa ou no trajeto entre a residência e o local de trabalho.
Regramento
É a empresa que deve regular o serviço, sofrer os riscos da atividade e preservar o meio ambiente físico e mental do trabalho, preservando a saúde e a segurança dos colaboradores. Essa é a regra. A prevenção é melhor que a precaução. O principal valor de uma companhia é defender a dignidade da pessoa humana. Prever eventuais acidentes e evitá-los.
Para algumas atividades, o Supremo Tribunal Federal (STF) já entendeu que são tidas como de risco inerente, pelo simples exercício e exposição à função, como mototáxi, motoboys e trabalhadores do transporte público e do setor de eletricidade.
Nesses casos, presumimos que o empregador responderá por eventuais acidentes, independentemente de culpa ou dolo. A norma no ordenamento jurídico para os demais trabalhos pede comprovação do dano, nexo de causalidade com a função e prova do dolo ou culpa do empregador.
Os direitos incluem benefícios previdenciários. O empregador está sujeito ao Poder Judiciário, com eventual indenização por danos materiais e morais. O ressarcimento depende de aspectos como a remuneração do trabalhador, o estado de saúde, a expectativa de sobrevida e a quantidade de herdeiros.
Presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Distrito Federal (OAB-DF), Felipe Mattos