A chegada da massa de ar polar ao Distrito Federal tornou ainda mais difícil a vida das pessoas em situação de rua. E a previsão do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) é que as temperaturas caiam ainda mais entre nesta quinta (19/05) e sexta (20/05) e fiquem entre 5ºC e 23ºC, com sensação térmica perto de 0°C. Com isso, a expressão "ajudar o próximo" ganhou muito mais sentido.
Agravado pela pandemia, o número de vulneráveis sem um teto para protegê-los teve um crescimento de 259%, ao comparar o número de indivíduos sem teto nos meses de abril de 2019 (593) e abril de 2022 (2,1 mil), conforme aponta a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes).
Para tentar levar um pouco mais de conforto a essas pessoas, a solidariedade é fundamental. Além das ações promovidas pelo Estado, o DF conta com uma rede de entidades e voluntários que deixam o conforto de suas casas, para levar um pouco de dignidade e acolhimento a quem faz das ruas a sua morada.
O Correio acompanhou o trabalho de líderes sociais envolvidos na doação de cobertores, agasalhos, marmitex e até banho quente, que tentam esquentar o coração e amenizar as dificuldades dos mais vulneráveis.
Um desses ativistas é Rogério Barba, 50 anos. Na última terça-feira (18/05), ele entregou mais de 100 cobertores na Praça do Relógio, em Taguatinga. Por 25 anos, o voluntário viveu nas ruas e passou por estados como São Paulo, Minas Gerais e Goiás, até chegar em Brasília, em 2010. Barba, que sentiu os efeitos do alcoolismo, diz entender a necessidade de apoio. "Acolho essas pessoas porque um dia eu fui acolhido", emociona-se.
Rogério passou por 14 internações devido ao vício em bebidas, mas foi salvo pelo projeto Cristolândia, de São Paulo. Em 2015, começou a ajudar a população em situação de rua com o coletivo Barba na Rua. No sábado, entregou 250 cobertores no centro de Brasília, além de 250 marmitex em acampamentos perto de universidades da capital.
Fundado em julho de 2018 pela jornalista Maria Baqui, 25, o BSB Invisível arrecada cobertores para doar no inverno. O grupo, formado por cerca de 40 voluntários, percorrerá regiões como a Rodoviária do Plano Piloto, entrequadras, Taguatinga e Águas Claras para entregar donativos. A ativista diz que a ideia é comprar moletons personalizados para as pessoas e devolver um pouco de dignidade a elas. "O objetivo é não verem coisas usadas, mas algo novo", explica.
Na campanha de 2021, a equipe entregou 500 agasalhos personalizados e mais de dois mil cobertores, meta que o grupo quer ultrapassar neste ano. "Acho que quando a gente se coloca no lugar da outra pessoa e tenta se imaginar naquela situação, fica mais fácil de despertar esse sentimento de empatia", analisa a fundadora do BSB Invisível.
A reportagem viu de perto essa realidade, na terça-feira, quando o relógio marcava 21h30 e o frio se aproximava cada vez mais das ruas do Plano Piloto. No centro da capital federal, cerca de 20 pessoas vulneráveis se esquentavam enfileiradas no chão, entre papelões e os poucos pertences. Uma das estratégias utilizadas pela população em situação de rua, para não sofrer tanto com a chegada do frio.
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É o caso do Joaquim* (nome fictício), 39, que mesmo acostumado com o clima de Santa Catarina se enrolou à coberta que ganhou como doação. Ele revelou que já passou por situações desconfortáveis para se esquentar. Uma vez, ele precisou se abrigar dentro de um plástico para ver se o frio passava. "Eu não tinha coberta, agasalho e o tempo frio castiga a gente", recorda.
O cidadão também revelou a vontade de se abrigar durante o tempo frio. Ele entende que nos próximos dias o clima vai ficar mais frio e não deve encontrar abrigos emergenciais na cidade. "É melhor criar alternativas logo do que deixar algum de nós morrer de hipotermia", opina Joaquim.
Deitado no chão, Wesley Vieira, 29, escutou a conversa e disse que procura outras alternativas para se esquentar, como realizar alguma atividade física. Vindo do Pará, o jovem está nas ruas há cerca de seis meses. "Sempre procuro me exercitar, e isso faz o corpo ficar quente. Porque estou parado agora e, mesmo de meia e cobertor, estou passando frio, sem falar que todo novato que chega nós ajudamos, pois aqui dividimos tudo", contou.
Nascido e criado no estado, o homem relatou que outras pessoas estão ajudando com doações. "Esse edredom ganhei hoje. O povo passa aqui (altura da 903 Sul) e dá as coisas pra gente. E olha que eu já fiz fogueira e usei até lençol rasgado para me proteger. A esperança vem quando o dia amanhece e aparece o sol", destacou Wesley.
Alunos carentes
Diretora do Centro de Ensino Fundamental (CEF) 12 de Taguatinga Norte, Alessandra Moreira, 50, relata que a escola fez doação de cobertores na pandemia da covid-19 e, neste ano, está com foco na doação de roupas de frio para 400 alunos que moram no Assentamento 26 de Setembro. "Ver o brilho no olho dos meninos não tem preço. Porque quando a gente faz a entrega de um casaco, parece que o aluno se sente mais pertencente à escola e tem um prazer maior de vir", opina a educadora.
Líder do Projeto para o Reino, criado em 2010, o ativista Jônatas Duarte, 42, que diz se dedicar a pastorear na rua, também esteve na Praça do Relógio. Ele ajudou a população vulnerável de outra forma, com banhos quentes e entrega de marmitex. "O nosso foco maior sempre foi Taguatinga e Ceilândia, porque são cidades que têm um grande índice de pessoas que estão na rua, e também porque tem muita droga", afirma. Ao lado de dez voluntários, ele usa um trailer com dois chuveiros aquecidos a gás e com caixa d'água em cima.
"Levamos toalhas, roupa limpa que recebemos de doações para a pessoa vestir e um kit de higiene para o banho — com shampoo, condicionador, sabonete, escova de dente, pasta e barbeador", detalha o pastor. O projeto surgiu em 2005, quando ele estava em uma igreja evangélica de Taguatinga Norte. "Comecei a incentivar as pessoas a irem em busca dessas pessoas perdidas em vulnerabilidade, porque tinha muitos amigos meus que eu via nessa situação e sentia que havia uma forma da pessoa sair daquele estado", relata Jônatas Duarte.
Entidades que acolhem
Quem também lançou a Campanha do Agasalho deste ano foi a Fundação Nacional do Índio (Funai), para beneficiar famílias indígenas das etnias como a Guajajara, Kariri-Xocó e Tuxáque, que vivem no Setor Noroeste. As doações são recebidas pelos servidores da instituição e alguns colaboradores. A distribuição dos agasalhos é feita presencialmente na comunidade pela Coordenação de Proteção Social da Funai, mas conta com a participação de todos os servidores da sede da fundação, além da colaboração voluntária da sociedade civil.
Ontem, o Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF) confirmou ao Correio que vai promover a Campanha Agasalho Solidário 2022, a partir da próxima segunda-feira, dia 23. As doações podem ser entregues em qualquer quartel operacional da corporação, no Centro de Capacitação Física, localizado no Setor Policial Sul (SPS), na Academia de Bombeiros Militares e no Quartel do Comando-Geral, no Setor de Administração Municipal (SAM).
No ano passado, a campanha do agasalho do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do DF (Crea-DF) atendeu 50 pessoas em situação de rua com o lema "Sua doação aquece um coração". A coordenadora da Comissão Projeto Voluntariado do Crea-DF, Juliana Castro Cardoso Henriques, diz que para este ano, a meta é dobrar o número. "O nosso objetivo é incentivar o engajamento social e a participação cidadã em ações transformadoras da sociedade, ampliando os valores da organização como solidariedade, empatia, compaixão, comprometimento, respeito e amor ao próximo", afirma.
Cuidados com a saúde
O pneumologista João Daniel Rego avalia que a ajuda às pessoas vulneráveis traz um benefício diante do vento frio que aumenta a sensação térmica durante a noite. "Além do desconforto da pessoa estar sentindo frio em uma área externa, essa situação pode levar a complicações diante do ar muito seco. O que congestiona a via aérea e a mucosa nasal", contextualiza.
Para o especialista, a população geral não pode esquecer de hidratar a pele com protetor solar e cremes, e cuidar dos olhos, que ficam expostos ao frio e à secura. "É recomendável usar os colírios lubrificantes e também a alimentação saudável para manter uma boa imunidade, pois a gente está se expondo nesses momentos em que a temperatura está mais baixa", afirma. João orienta que as pessoas devem evitar aglomerações em locais fechados. "A gente ainda pode se infectar e transmitir outras doenças virais, principalmente em quem não está vacinado contra a covid-19 e gripe", conclui.
Colaborou Ana Isabel Mansur
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