A realidade no meio acadêmico, há uma década, era de um espaço ocupado, majoritariamente, por pessoas brancas. Em um Brasil onde pretos, pardos e indígenas representam 57,3% da população nacional — segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2019 —, a presença reduzida de alunos desse segmento nas universidades entrou em discussão. Na busca de uma participação mais representativa desses grupos, surgiram políticas de ações afirmativas e, como fruto dessa luta, a política de cotas raciais.
A Lei nº 12.711/2012 contribuiu para tornar o ambiente universitário mais plural e democrático. Dez anos após a sanção, a norma passará por avaliação, o que reacendeu os debates sobre a reserva de vagas. O texto define que 50% daquelas em universidades e institutos federais sejam para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade se destina à população com renda familiar de até 1,5 salário-mínimo per capita (R$ 1.818).
Já a distribuição das vagas para cotas ocorre de acordo com a proporção de indígenas, negros, pardos e pessoas com deficiência de cada unidade da Federação em que fica a instituição de ensino. Presidente da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) afirma que, ao ser sancionada, a lei previa a revisão dela após 10 anos de vigência. O texto, porém, não estabeleceu como esse processo deveria ocorrer, os critérios, nem o órgão responsável pela análise. "É indiscutível o quanto essa norma trouxe avanços no acesso ao ensino superior. E vamos trabalhar, aqui no Senado, pela continuidade e pela ampliação dessa política. Entre 2012 e 2022, houve crescimento de quase 400% no número de negros e negras no ensino superior. Um resultado extraordinário", avalia.
Atualmente, tramita na Casa o Projeto de Lei nº 4.656/2020, que aguarda análise da comissão e prevê a continuidade da política, com avaliação por década, para manutenção da medida. "Assim, caso o preenchimento das vagas fique abaixo do percentual de cada grupo em uma unidade da Federação, a cota será automaticamente renovada por mais 10 anos. Se o preenchimento das vagas for igual ou superior a esse percentual, ela se mantém por mais cinco, no mínimo", detalha o senador.
Vanguarda
A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira do país a adotar cotas raciais nos processos seletivos para graduação, antes da sanção da lei de 2012. Aprovado no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) em 6 de junho de 2003, o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial estabelecia que 20% das vagas do vestibular se destinariam a candidatos negros e previa vagas para indígenas por demanda. A medida passou a valer no ano seguinte.
Em 2019, 16 anos após a aprovação das cotas raciais na instituição de ensino, 48% dos universitários se autodeclaravam negros, pardos ou indígenas. Em 2003, esse percentual era de 4,3%. A professora Dione Moura foi uma das relatoras da proposta da UnB e conta que a decisão serviu de modelo para políticas nacionais, como a Lei das Cotas. "Nós avaliamos o plano de metas e trouxemos duas intelectuais negras que pesquisavam o tema de educação e inclusão. Vimos que só uma ação afirmativa e reguladora permitiria dar início ao aumento na igualdade de acesso, (com taxas) em um nível mais próximo da realidade brasileira", observa.
Os desafios para aprovar a proposta foram grandes, segundo Dione, em virtude de "grande resistência e incompreensão". "Algumas reações se justificavam pelo desconhecimento. Muitos entendiam que as ações afirmativas significavam interferência do Estado e, por isso, defendiam que a sociedade deveria se organizar sem essa interferência. Outros diziam que não existia desigualdade racial ou que isso (a taxa pequena de acesso) era provocado por fatores de ordem econômica, não racial. Mas uma parcela considerável apoiou, promoveu e esteve aberta ao diálogo", relembra a professora.
Anos depois da adoção da política, a resistência persiste, segundo o antropólogo Rafael Moreira Serra da Silva, 37 anos, que acompanhou de perto os efervescentes debates enquanto cursava ciências sociais na primeira turma da UnB. Ele ingressou na universidade pela política de cotas, mas, à época em que estava no ensino médio, a temática racial ainda estava longe das salas de aula. "Não me recordo de professores que tenham apresentado esse tipo de reflexão", conta.
O movimento negro crescia na universidade, mas os contrários às cotas também ganhavam espaço, segundo ele. "Havia professores que se manifestaram, inclusive, de maneira pouco respeitosa, dizendo que as notas cairiam, que os alunos ingressantes pelo sistema não tinham a mesma capacidade, os mesmos méritos. E, até hoje, esses argumentos continuam", lamenta Rafael. O antropólogo lembra que o debate ainda envolvia questões genéticas, baseadas na alegação de não ser possível saber se as pessoas eram brancas ou negras no Brasil, devido à miscigenação.
Desigualdades
Integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, Nelson Fernando Inocêncio da Silva lembra, porém, que as cotas raciais são, na verdade, uma política afirmativa para reparação de uma dívida histórica. "O Brasil, desde o século 19, pelo menos, envolveu-se com políticas voltadas para grupos específicos da sociedade. E, aqui, falamos de imigrantes europeus. Houve qualificação, escolarização, assentamento dessas populações", destaca. "Precisamos entender que o país cresce de forma desigual, principalmente considerando que o Estado deu atenção a alguns segmentos, e a outros, não, como negros e indígenas".
Nelson Fernando acrescenta que, apesar dos questionamentos sobre o suposto comprometimento da excelência do ensino nas instituições de nível superior, o processo não comprometeu o desempenho acadêmico dos estudantes que ingressaram por esse sistema. "A UnB, por exemplo, tem o IRA (Índice de Rendimento Acadêmico). Todo estudante que entra — por cotas ou não — precisa ter um resultado que corresponda ao estipulado nas regras da universidade para se manter nela. Se você não o tem, acaba desligado", reitera.
No ano passado, o IRA de estudantes cotistas ficou em 3,39, acima do verificado entre aqueles que entraram na UnB pelo sistema universal (3,35). Decano de Ensino de Graduação da UnB, Diêgo Madureira de Oliveira acredita que há um longo caminho a percorrer. "Na verdade, o desafio real, a curto prazo, talvez seja fomentar, na sociedade, uma discussão pautada em evidências e princípios democráticos, não em posicionamentos ideológicos ou sem embasamento", comenta.
A aprovação do estudante de ciência política Guilherme Esteves do Socorro, 21, resultou da política de cotas. Ele conta que o irmão, que ingressou pelo mesmo sistema, tornou-se uma inspiração para tentar a vaga na instituição de ensino. "Ele se formou em matemática. Agora, foi contemplado para fazer pós-graduação e convocado em primeiro lugar no concurso (para professor) da Secretaria de Educação. Por causa dele, eu persisti para entrar, porque sabia que era possível. Ele é o exemplo mais próximo que tenho de que o estudo dignifica e de que, no fim, todo o esforço valerá a pena", comemora. "Nos últimos anos antes da faculdade, batalhei muito para fazer acontecer. Não foi nada fácil. Tive de me isolar de muitos para manter o foco e chegar aonde eu queria. Essa política pode não só mudar a vida da pessoa, mas de toda uma família", completa.
Renda familiar
Outra política afirmativa adotada em instituições de ensino superior do país é a das cotas para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Integrante do Neab, Nelson Fernando Inocêncio acrescenta que as cotas sociais são tão importantes quanto as raciais, devido à grande distância entre a educação pública básica e a superior. "Elas visam superar limites impostos pela luta de classes. Como ainda existe um processo de profundas discrepâncias e uma péssima distribuição de renda no Brasil, precisamos de políticas que contribuam para a melhoria da qualidade de vida de pessoas que pertençam a classes econômicas mais vulneráveis", pontua.
Até 2012, os estudantes da rede pública de ensino que ingressavam na UnB viviam uma realidade diferente nos corredores da instituição, segundo a assistente administrativa Thais Tavares Bezerra, 28, aprovada no curso de química, à época. "Até então, a UnB tinha adotado as cotas para negros, não existia a política para pessoas de baixa renda. Quando entrei, lembro que a turma tinha só mais três pessoas, além de mim, com origem na escola pública", recorda-se.
Seis anos depois, em 2018, Thais voltou para a universidade, desta vez, no curso de ciências ambientais da UnB e pelo sistema de cotas sociais. "Hoje, vejo uma universidade mais diversa. Mais pessoas da minha realidade passaram a fazer parte do corpo discente. Nem todo mundo vive a realidade de ser sustentado pelos pais. Em muitos momentos, na UnB, eu me sustentei graças às bolsas concedidas por programas de extensão e de pesquisa. Mas muitos ainda não têm condições de se manter", lamenta.
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