Hilda Hilst sempre teve conexões com Brasília. A arquiteta Gisela Magalhães, uma de suas melhores amigas, morou aqui. E, depois, vários grupos de teatro brasilienses montaram Cartas de um sedutor e A obscena senhora D, entre outros textos. Fui visitá-la, em diversas ocasiões, na Chácara do Sol, próximo a Campinas, São Paulo. Certa vez, ela me convidou para morar lá. Expliquei que era inviável, eu tinha família: "Traga a família também", replicou.
Ela é autora de ficções dramáticas, poéticas, metafísicas e abissais, que só podem ser comparadas a Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Hilda era uma mulher com o sentimento do trágico, mas, ao mesmo tempo, extremamente bem-humorada. Na parte final da vida, ela resolveu chutar o balde e, indignada com a indiferença à sua arte, escreveu paródias hilárias de literatura pornográfica, para escândalo dos críticos que a elogiavam: "As pessoas me tratam como se eu fosse uma tábua etrusca. Mas vocês querem é sacanagem, é isso que faz sucesso? Então, eu quero fazer sucesso, tomem", provocava Hilda.
Não alcançou o sucesso que esperava, mas, em compensação, se divertiu muito. Para minha surpresa, encontrei na coletânea Podem me chamar de louca (Ed. Nova Fronteira), de Hilda, inserida na coleção intitulada, significativamente, Biblioteca diamante, uma crônica sobre aquele período conturbado da vida dela.
Ao responder por que razão ela optou pelo riso, depois de escrever uma obra literária tão dramática e densa, ela provoca: "Optei pela minha salvação". E ilustra com um verso de sua lavra: "... porque mora na morte/Aquele que procura Deus na austeridade". Estava muito cética quanto ao futuro de uma humanidade dividida entre os que padecem de uma fome hedionda e os que gozam de fartura resplandescente.
A certa altura, ela afirma: "Quando penso que o conceito de muitos é o de 'Homo sapiens', começo a sorrir. O homem! 'O verme no cerne', como disse um prodigioso. Alguns homens geniais sugeriram que o problema do homem é o de encontrar alguma substância química que o imunize da barbárie. E digo simplesmente que é preciso devolver a alma ao homem".
Na encruzilhada do drama, ela responde com a poesia e conclama: "Que te devolvam a alma/Homem do nosso tempo./Pede isso a Deus/Ou às coisas em que acreditas/À terra, às águas, à noite/Desmedida./Uiva se quiseres/Ao teu próprio ventre/Se é ele quem comanda a tua vida, não importa".
E, mais adiante, complementa: "Pede à mulher/Àquela que foi noiva/À que se fez amiga,/Abre a sua boca, ulula/Pede à chuva/Ruge/Como se tivesses no peito/Uma enorme ferida./Escancara a tua boca/Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA."