Em um intervalo de 10 horas, a postura criminosa de condutores do Distrito Federal resultou na morte de quatro pessoas em pleno Domingo de Páscoa, entre elas a de uma mulher grávida de 9 meses e uma adolescente de 12 anos. A disputa de "racha" e a alcoolemia ao volante, comprovada por teste de bafômetro, estão entre as possíveis causas para as colisões que resultaram nas tragédias. No feriadão da Semana Santa, as equipes de fiscalização de trânsito do DF flagraram 517 motoristas embriagados, entre quinta-feira e a madrugada de ontem. De acordo com o Departamento de Trânsito (Detran), dois desses condutores haviam sido abordados há menos de um mês, pelo mesmo motivo.
Por volta das 20h30 de domingo, na Epia Sul (DF-003), na altura da Quadra 26 do Park Way, sentido Plano Piloto, Cynara Maria Lacerda Alves, 32 anos, grávida de 9 meses, e a filha Talita Alves Lemos, 12, morreram em uma ocorrência envolvendo três carros. O caso está sob responsabilidade da 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante), e uma das linhas de investigação indica que um "racha" entre dois veículos, que fugiram do local, pode ter causado o acidente.
Horas antes, às 10h30, na Quadra 517 de Santa Maria, o casal, Hilberto Oliveira da Silva, 47, e Vera Lúcia da Cruz Sampaio, 43, foi atropelado por uma motorista embriagada de 36 anos. Hilberto morreu no local e Vera chegou a ser levada ao Hospital Regional de Santa Maria, com um ferimento no crânio, suspeita de traumatismo cranioencefálico, fratura na perna esquerda e escoriações pelo corpo, mas não resistiu e o óbito foi constatado na noite de domingo. A 20ª Delegacia de Polícia (Gama) cuida do caso, e um protesto será feito hoje, às 18h30, no local do acidente.
Gravidade
O acidente de trânsito que vitimou Cynara, Talita e o bebê envolveu outros quatro carros. Segundo registros da ocorrência policial, dois veículos passaram em alta velocidade pela Epia Sul, no sentido Gama. Os condutores aparentavam participar de um "racha". "Estavam ultrapassando os demais veículos na via e trocando repentinamente de faixa", relata a ocorrência. Em determinado momento, os dois carros colidiram com outros três que passavam pelo local.
A suposta disputa, porém, é investigada pelo delegado-chefe da 11ª DP, Rafael Bernardino. Ao Correio, ele informou que os fatos estão sendo apurados. "Sabemos que é um caso que gera comoção e repercussão, mas nada pode ser dito ainda. Estamos verificando bem a situação, para não falar o que não ocorreu", pondera o investigador. Segundo o delegado, o bebê, judicialmente, não é considerado uma vítima.
A gestante ficou presa às ferragens do veículo em que estava, com as duas filhas, o marido e o cachorro Thor, um American Bully de 2 anos. A família morava em Planaltina. Cynara foi retirada das ferragens pelo socorro e, mesmo sem vida, foi levada ao Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) pela equipe médica, para tentar salvar o bebê, mas sem sucesso. Talita sofreu uma parada cardiorrespiratória no local do acidente, de acordo com o Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF). Ela foi submetida a manobras de ressuscitação por mais de uma hora e não resistiu.
Nathalia, 13, a filha mais velha de Cynara, estava inconsciente e em estado instável. Ela foi levada ao Hospital de Base. Thor estava desaparecido desde a hora do acidente, após mobilização de amigos e conhecidos da família nas redes sociais, o cão foi encontrado e levado a um abrigo. As irmãs eram alunas do Centro de Ensino Fundamental (CEF 2) de Arapoanga desde 2019. A mais velha cursa o 8º ano, e a mais nova frequentava o 7º ano.
Tristeza
Ao Correio, a vice-diretora da instituição, Sarah Karoline, informou que o colégio ficou sabendo da fatalidade ontem de manhã, pela avó das estudantes, mãe de Cynara. "Estava muito abalada. As meninas são ótimas alunas, nunca tivemos problemas com elas", lamenta a professora. Em nota de pesar, o CEF 2 de Arapoanga escreveu que "nossos corações estão em luto e lamentamos profundamente esse momento de extrema tristeza. Expressamos, aqui, nossos mais sinceros sentimentos e pedimos a todos que direcionam suas preces para que toda família seja confortada".
Em um dos carros atingidos, estavam o motorista, de 33 anos, e os dois filhos, de 6 e 3 anos. Os três foram atendidos pelas equipes no local e apresentavam algumas escoriações e dores, aparentemente sem gravidade. Mesmo assim, as crianças foram encaminhados ao Hospital de Base. No quinto veículo envolvido, conduzido por uma mulher de 31 anos, também havia uma criança, de 6 anos, irmã da motorista.
A mulher foi atendida pelos bombeiros com suspeita de fratura no braço esquerdo. Segundo os militares, ela reclamava de dores abdominais e estava consciente, mas desorientada e instável. A motorista foi encaminhada para o Hospital Regional de Taguatinga. A menina tinha um edema no rosto e sentia dor abdominal. Os bombeiros suspeitaram de traumatismo cranioencefálico. A criança estava consciente e estável, mas desorientada, sendo levada para o Hospital de Base.
Atropelamento
Motorista do carro que atropelou e matou os ciclistas Hilberto e Vera, a faturista Stefania Midiã Silva de Araújo estava embriagada. Ela não se feriu. Segundo o Corpo de Bombeiros Militar, a condutora parou o veículo a 500 metros do local da colisão e, ao ser abordada pelos militares, relatou não se recordar de como o acidente teria acontecido. Ao ser indagada, ela se desentendeu com os policiais militares e acabou conduzida para a 20ª Delegacia de Polícia (Gama).
Stefania foi submetida ao teste do bafômetro, que constatou a alcoolemia de 0,62 miligramas de álcool por litro de ar expelido (mg/L), valor quase duas vezes superior ao limite que configura crime, de 0,33mg/L. O Correio teve acesso à ocorrência do caso e, de acordo com o documento, a motorista foi presa e autuada em flagrante delito. No entanto, ela foi solta ontem pela manhã, após audiência de custódia em que recebeu liberdade provisória.
À reportagem, Stefania justifica ter pegado no volante por conta de uma emergência familiar. "No momento do acidente, eu não tinha ingerido bebida, apenas na noite anterior. Quando amanheceu, houve uma emergência familiar e somente eu tinha veículo, então, precisei urgentemente me deslocar. Infelizmente, o fato se deu", lamenta. Ela nega ter tido qualquer desavença com os policiais. "Em nenhum momento houve desentendimento. Depois que o fato ocorreu, entrei em contato com pessoas que estavam próximas, pois estava sem meu celular. Pedi para que ligassem de imediato para o Corpo de Bombeiros. Quando a polícia chegou, junto ao atendimento médico, me apresentei a eles. Fizeram perguntas, respondidas por mim, sem nenhuma briga. Fui levada à delegacia após o atendimento médico", conta.
Para o doutor em transportes Edson Benício, a fiscalização é um elemento chave para evitar esse tipo de acidente. "As blitze em vários pontos da cidade são divulgadas em grupos de WhatsApp. Utiliza-se muito o radar, uma fiscalização fixa, mas não se tem o agente fiscalização na via, que pode ver a infração e já pedir para parar. A supervisão fixa nos controladores eletrônicos de velocidade não está coibindo acidentes envolvendo rachas e excesso de velocidade" avalia.
Consequências
O advogado e presidente da Comissão de Trânsito de Ceilândia, Neil Armstrong Santana Santos ressalta que os suspeitos de "racha" podem pegar até 10 anos de prisão. "Se for comprovado que os participantes estavam disputando corrida, vão responder ao Artigo nº 308 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Como ocorreu morte, a pena define privação de liberdade, de cinco a 10 anos", explica.
Quanto ao fato envolvendo Stefania Midiã, o advogado detalha que a motorista pode receber até oito anos de reclusão. "Ela estava comprovadamente sob efeito de álcool. Nesse caso, vai responder pelo Artigo nº 302 do CTB, com resultado morte. A pena é de cinco a oito anos, com a suspensão ou até proibição de dirigir", completa Neil.