Escrevo ainda sob o abalo da notícia da morte de Hugo Rodas. Ele era o nosso bruxo emérito do teatro. Sempre foi um adolescente nato, não importava com que idade estivesse, permanentemente disposto a transgredir os limites estéticos e a experimentar novas formas de encenar e de viver a vida. Gostava de formar grupos com jovens. E todos eram caretas perto dele.
Como dizia um texto de apresentação da Agrupação Amacaca, os saltimbancos candangos que trabalhavam com Hugo, ele era o nosso guru das artes do movimento, que é o músculo onde funda o seu discurso poético e é o que o espectador deve apreciar. E, de fato, Hugo só acreditava em deuses que saibam dançar.
Antes de brasileiro, o uruguaio Hugo Rodas se considerava candango. Não se tratava de uma frase de efeito. Ele se tornou um dos maiores diretores do teatro brasileiro ao fazer da cidade o campo das suas experimentações estéticas. Misturava todas as linguagens no caldeirão e arrancava a alegria das situações mais difíceis.
Conversei com Hugo algumas vezes nos últimos tempos e, quem não pertencia a seu círculo íntimo, não diria que ele tinha câncer. Sempre estava radiante de energia. Sorria e esbravejava com a boca, os olhos, as mãos, as pernas, os cotovelos e os cabelos. Era um duende do teatro, da cabeça aos sapatos. Fazia de tudo: atuava, costurava roupas de figurino, tocava piano, preparava o cenário, dançava, coreografava e dirigia.
Misturar teatro e dança era algo instintivo para Hugo e ele realizava isso com a maior naturalidade. Essa mixagem impactou muito as montagens de outros grupos emergentes nas décadas de 1980, 1990, 2000 e 2010. Estabeleceu conexão e parcerias com os personagens e os grupos mais importantes da cidade. Cresceu com o movimento cultural candango.
Hugo era não só o grande diretor de teatro de Brasília, mas um dos grandes do teatro brasileiro. Não sou eu quem diz. O diretor do Teatro Oficina José Celso Martinez escreveu sobre Hugo, em livro organizado por Karla Osório: "Poeta Xamã do Teatro Dança, Canto In-Corporado na Alegria Tragicômica dos Saltimbancos. Nunca perdeu, ao contrário, faz retornar a cada instante suas origens bárbaras, seus minerais, seus vegetais, seus Animais Totens mas, tecnizando tudo na Era Cyber. Numa entrevista recente do diretor Antunes (Filho), seu lamento pelo luto ainda por Pina Bausch, Kazu Ohno me pirou; esse diretor dos diretores brasileiros não sabe que existe no seu nariz, aqui, no Hemisfério Sul, Hugo Rodas. Esse gênio que vai muito além do que esses que foram grandes artistas, mas contidos, civilizados, caretas, do Hemisfério Norte."
Não bebo nada de álcool, mas fui assistir a uma magnífica remontagem de Os saltimbancos em 2020, com a Agrupação Teatral Amacaca e saí do teatro meio alterado, com a sensação de ter bebido um bom vinho. Era o sopro dionisíaco que nosso bruxo insuflava no teatro.
A morte descerra o mistério. A perda é enorme, mas Hugo viveu uma vida bela, plena de invenção, de afeto e de audácias. Lutou até o fim pela vida, com coragem, dignidade e alegria. É uma das pessoas que dignificaram Brasília.