A noite estava animada no plantão da Semana Santa no jornal. Pelo corredor extenso ecoava o som de música de altíssima qualidade. Um nordestino reverenciando o outro, e o momento de buscar o lanche virou uma pausa especial para alegrar o dia. Nem de longe as notas enganavam. Era o Rei do Baião dando o seu show de sanfona, com letra e ritmo perfeitamente casados a convidar o espectador a dançar um xote grudadinho ou simplesmente arrastar o pé no chão batido.
Seu Humberto já foi tema de crônica nestas páginas. Pudera. Depois de 30 anos de casa, que ele completa em 2022, histórias não faltam para contar. Elogiei a escolha musical e logo o sorriso se abriu. "Lá no meu sertão pros caboclo lê / Têm que aprender um outro ABC / O jota é ji, o éle é lê / O ésse é si, mas o érre / Tem nome de rê", seguia Gonzagão durante nossa prosa.
Com o lanche já nas mãos, parei para ouvir o guardião da entrada da empresa. Ele revelou que foi assim mesmo que aprendeu o abecedário, lá em Alagoas, em cidade do interior a menos de 200km da capital Maceió. "O jota é ji, o éle é lê / O ésse é si, mas o érre / Tem nome de rê", seguia a canção. "No meu tempo era assim, foi como aprendi", disse Seu Humberto.
O sertão alagoano ele deixou aos 12 anos. Já no solo candango pisou em 1961, um ano depois da inauguração da capital. Na semana em que ela completa 62 anos, nada mais apropriado do que conhecer mais sobre a vida de um de seus primeiros habitantes. E tudo com Luiz Gonzaga no background. "Até o ypsilon lá é pissilone / O eme é mê, i o ene é nê / O efe é fê, o gê chama-se guê / Na escola é engraçado ouvir-se tanto ê."
Para não dizer que é mentira do compositor, Seu Humberto ainda começou a soletrar o abecedário como na música. "A, bê, cê, dê / Fê, guê, lê, mê / Nê, pê, quê, rê / Tê, vê e zê", disse, quase que cantando.
E daí em diante o repertório só melhorou. Asa Branca deu o ar da graça no hall de entrada. É a música de Luiz Gonzaga que em mim desperta mais memórias afetivas. Aonde quer que eu esteja, ela me faz lembrar a raiz nordestina da família, as viagens de uma menina da cidade, rodeada de privilégios, ao sertão árido e pobre, mas de intensidade e força que poucas vezes vi.
Certamente é daquela labuta, daquele pesar que nasce a leveza e a generosidade do olhar de Seu Humberto, do cantar de Luiz Gonzaga e dos corações de tantos outros como eles. O sotaque arretado e o sorriso marcado nas rugas que rodeiam o rosto contam as histórias de quem nunca abandonará de vez os ABCs e as verdades do sertão.
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