"Céu de Brasília, traço do arquiteto. Gosto tanto dela assim", com o perdão pelo clichê, é difícil descrever a capital sem lembrar dos versos de Djavan. E hoje, 16 de março, comemoramos os 65 anos da data em que os traços de Lucio Costa foram escolhidos para contrastar com o horizonte vasto do Planalto Central.
Nesse mesmo dia, em 1957, a Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal escolheu o projeto urbanístico do Plano Piloto, criado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa.
Entre arquitetos e empresas do ramo da época, o concurso teve inicialmente 62 inscritos, dos quais apenas 26 apresentaram suas propostas ao júri, que tinha em sua banca nomes como Oscar Niemeyer e Israel Pinheiro.
Reza a lenda que Lucio não tinha a intenção de participar da disputa, como ele mesmo admite na apresentação de seu projeto, onde é possível ler: "Não pretendia competir e, na verdade, não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta".
Com cerca de 20 páginas datilografadas e desenhos e rascunhos feitos em folhas A4, a ousadia e o texto poético do arquiteto surpreenderam e acabaram por vencer as demais propostas, apesar dos outros projetos contarem com maquetes e apresentações bem mais elaboradas.
A Carta de Atenas
No Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933, surgiu a Carta de Atenas. O documento, escrito pelo arquiteto, urbanista, escultor e pintor Le Corbusier, determinava que uma cidade deve ser concebida de modo funcional, considerando de forma clara as necessidades do homem.
Com base nesse conceito, que preconiza a divisão entre as áreas residenciais, de trabalho e de lazer, nasceram as quatro escalas do Plano Piloto e Brasília se tornou um dos maiores exemplos concretos da Carta de Atenas.
As escalas são, inclusive, o que a designer e fotógrafa Julieta Sobral mais gosta na cidade projetada pelo avô. A filha da arquiteta e ex-presidente do Iphan Maria Elisa Costa, que seguiu os passos do pai, revela que a Escala Gregária é a sua preferida.
"Acho as superquadras fascinantes, o espaço comum das quadras. Adoro que a mãe pode chamar a criança dando um berro lá embaixo e ser atendida. Do que ele criou, é uma das coisas que mais gosto".
Julieta acrescenta o quanto ações que ferem as escalas prejudicam a cidade e a importância da preservação desses quatro aspectos para o legado de Brasília. Para ela, cercas e grades fechando os pilotis são terríveis e desvirtuam a origem da cidade, por exemplo.
O arquiteto e urbanista Andrey Rosenthal ressalta que uma das vantagens da Escala Residencial e do limite de altura dos prédios é que a baixa densidade permite outras relações. Entre elas, a proximidade, o controle, a melhoria dos padrões ambientais e mais áreas verdes.
Porém, faz uma grande ressalva ao mencionar que essa qualidade de vida não é privilégio de todos e que é importante sempre lembrar que Brasília não se resume ao Plano Piloto e é necessário olhar além.
Andrey aponta, também, os desafios que surgem em virtude do desenho da capital, como a baixa ocupação do solo, a descontinuidade entre as edificações e o rodoviarismo, que, em virtude de seu caráter diferenciado, pedem também soluções próprias.
A cultura dos Eixos
Os desenhos da cidade inspiram criações de arte em praticamente todas as áreas da cultura. Além de Djavan, Renato Russo também canta sobre a beleza da capital. João de Santo Cristo desembarca na Rodoviária e fica bestificado, assim como os brasilienses que se deparam com as imagens aéreas de tirar o fôlego feitas por Bento Viana ou com os poemos simbólicos de Nicolas Behr.
Tornando-se motivo de inspiração para tantos artistas, é de vital importância preservar o primeiro conjunto urbano do século 20 a ser reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco).
O secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues, o Bartô, acredita que o traçado de Lucio Costa modificou a nossa forma de "viver cidades" e que Brasilia se tornou uma cidade bastante acolhedora
Rodrigues acredita que os eixos e tesourinhas de Lucio Costa são grandes responsáveis por alguns dos regionalismos da capital, fazendo parte de um dialeto e uma forma de se locomover e se orientar muito características.
"Até nosso GPS natural é diferente. Moro aqui há 47 anos, quando saímos de casa somos guiados pela memória da cidade. Tanto que quem sai daqui costuma ficar confuso em outras capitais. Nos habituamos às linhas retas, e o desenho de Lucio está sempre em nossa cabeça".
O secretário ressalta ainda que a produção cultural, como o rock brasiliense, é um reflexo da forma de viver em Brasília. "A geografia foi fundamental para o nascimento de bandas como a Legião Urbana, era possível fazer barulho de noite no meio da rua e não incomodar ninguém".
Atualmente, o processo se repete e a atividade cultural é altamente voltada para os espaços abertos e para a ocupação da cidade, com apresentações de dança, de bandas, feiras e manifestações artísticas.
À frente da pasta cultural do GDF, Bartô acredita que as novas gerações estão marcando território e é necessário investir na preservação e revitalização para que esses espaços continuem sendo celeiros artísticos.
Andrey, como urbanista, ressalta a importância de dialogar com a comunidade e de construir, de forma participativa, regras de convívio social mais justas. Ele chama atenção para o fato de que nem todos são contemplados pelas "indiscutíveis qualidades de Brasília" e que, uma vez isso se torne realidade, mais vozes falaram pela preservação.
"Aqui entre nós, numa cidade em que não existe transporte coletivo de qualidade, quem vai se importar com um puxadinho da comercial elegante? Só nós mesmos. É preciso ampliar esse debate", defende.
Áreas como a Concha Acústica e a Praça do Museu da República, são alguns dos locais muito usados pelos jovens e que foram revitalizados pela secretaria. Um ponto de preocupação e alvo de promessas é o Teatro Nacional e as passagens subterrâneas do Eixão.
"Isso é a nossa grande preocupação, e existe um desejo grande de voltar a usar esses espaços tão ricos para nossa história e cultura. Brasília está bem preservada, mas precisa de cuidado permanente, que ultrapasse governos", completa.
65 anos
Datas como a de hoje são lembretes de esperança para Julieta Sobral. "É uma lembrança de que o Brasil pode dar certo. No governo Juscelino existia a esperança de uma nação mais justa e atualmente nos afastamos muito disso".
Lucio, segundo a neta, não era muito ligado em datas e efemérides. Era um homem de ação, que acreditava no poder das atitudes no dia a dia, o que para Julieta é mais um exemplo da confiança de que o Brasil pode voltar a ser a promessa que foi um dia.
"É uma honra ser neta de Lucio Costa. Sou grata ao universo por ter me colocado neste planeta em uma família com um legado tão importante", completa.
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