“Isso vai dar trabalho”, “Tenho vergonha de reclamar”. Quando o assunto é direito do consumidor, essas frases são, corriqueiramente, utilizadas como justificativas por consumidores para evitarem recorrer à lei. Mas, ao longo dos anos, essa realidade tem mudado — pelo menos no Distrito Federal. Dados do Instituto de Defesa do Consumidor (Procon) mostram que, no ano passado, 65.826 consumidores foram atendidos na capital federal, sendo que as agências de viagens lideraram o ranking das empresas que mais causaram transtornos. O número é 1,49% menor do que o levantamento de 2020, quando 66.825 reclamações foram registradas. Apesar da variante, especialistas são categóricos em dizer que o conhecimento tem ajudado os consumidores a buscarem, cada vez mais, seus direitos.
De acordo com o diretor do Procon, Marcelo de Souza do Nascimento, problemas para cancelar ou alterar contratos com agências de viagens lideraram o ranking de reclamações no ano passado. O atendimento ao cliente também foi considerado insatisfatório pelos consumidores, que se queixaram de ausência ou excesso de prazo para resposta das empresas e de não suspensão imediata da cobrança. “Era um segmento já moderado, mas em razão da pandemia, fechamento de aeroportos e fronteiras, isso gerou a enxurrada de reclamações destas empresas, tanto de operadoras de viagens como companhias aéreas”, explica. Em geral, nesses dois anos de crise de covid-19, as empresas não atenderam satisfatoriamente as reclamações no Procon, não obtendo 50% de índice de resolução.
Apesar do volume e baixo atendimento da área de turismo serem destaque, Marcelo explica que a telefonia segue como setor mais reclamado. “É um serviço quase universal, quase todo cidadão tem aparelho de celular, então é muito utilizado, se não o mais”, diz. Porém, o diretor explica que o segmento é, ainda, o que tem maior índice de resolução. “Embora seja o mais reclamado, até pela quantidade de cliente que usufrui desse serviço, eles são os segmentos que mais resolvem a vida do consumidor quando nós contatamos. Temos índices de soluções de até 90%”, pontua. Junto à telefonia móvel, há, ainda, TV a cabo, internet e telefonia fixa.
Dentre os motivos de reclamações mais frequentes, Marcelo pontua problemas contratuais e dificuldade de contato com as empresas. “Clausulas abusivas, não muito claras ou que limitam o direito do consumidor estão entre as mais recorrentes. E temos também a falha dos fornecedores em atender o consumidor através do serviço de atendimento ao cliente, ou disponibilizar canais que sejam eficientes. Não adianta colocar um número para ligar que não funciona. Ou, que mesmo quando consegue, é aquele martírio para conseguir resolver o problema”, cita.
Do total geral de atendimentos registrados no ano passado, 15.382 queixas de consumidores se tornaram processos completos, com apresentação de documentos e envio de notificação para a empresa. Desse volume, 64% dos registros foram resolvidos em contato inicial e preliminar do consumidor com o órgão, no prazo máximo de 20 dias. Para Marcelo os consumidores têm ficado mais conscientes dos seus direitos. “São consumidores mais bem informados dos seus direitos e deveres, que eles também têm nas relações”, diz. “O Procon tem prestado serviço de maior qualidade, mais técnico, o tempo de resposta diminuiu bastante e isso também é uma parte do consumidor procurar mais o órgão.
Dificuldade de contato
Morador do Lago Norte, o aposentado Vamberto Tavian Campos, 68 anos, se enquadra no perfil de consumidores que já passaram por problemas com empresas de aviação. Ele recorda que, durante o ano passado, precisou cancelar uma viagem, e teve dificuldades ao tentar entrar em contato com a empresa de aviação. “Quando estava mais próximo da viagem, que aconteceria em novembro, eu decidi cancelar. Entrei em contato, pedi o ressarcimento através de um voucher que seria gerado com o valor, mas quando chegou janeiro, deste ano, não tinha tido resposta”, diz.
Após inúmeras tentativas, Vamberto conseguiu conversar com uma das atendentes do SAC. “Acionei a reportagem do Correio, e a empresa logo entrou em contato para tentar solucionar o conflito. A atendente foi muito atenciosa, e me acompanhou durante todo o processo, até conseguir o voucher de ressarcimento”, diz. Apesar de solucionar o problema, o aposentado defende que “a dor de cabeça poderia ter sido evitada”. “Eu questionei a atendente quanto a demora para resolver. Precisei colocar a boca no trombone para resolver, e não tinha motivo para demorar tanto”, acredita.
Conquistas
Com o objetivo de reforçar a importância do conhecimento quando o assunto é direito, nesta terça-feira (15/3) é comemorado o Dia Mundial do Consumidor. A data lembra a fragilidade dos usuários, não apenas entre aqueles que consomem, mas também entre empresas e lojas, para que se recordem do compromisso de respeitar todas as leis. O advogado Welder Rodrigues Lima explica que as relações de consumo estão presentes no cotidiano de todo cidadão, desde uma simples compra em uma padaria, até na utilização de certos serviços públicos, como energia e água. “Desse modo, é imprescindível que, para que ocorra justiça nessas relações de consumo, o cidadão (consumidor) tenha plena consciência dos seus direitos e saiba o que fazer em caso de desrespeito a esses direitos. Daí a importância em se falar em direito do consumidor”, reitera.
O especialista explica que a criação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) — Lei 8.078/1190 —, que entrou em vigor em março de 1991, foi um importante marco de cidadania e contribuição para a justiça social. “A liberdade de empreender deve sempre observar a sua função social, sendo vedado o lucro a qualquer custo. Nesse sentido, muito embora tardio e paulatino, podemos dizer que ao longo dos anos muitos avanços em matéria de direito do consumidor foram alcançados, a jurisprudência tem majoritariamente decidido, quando há margem interpretativa, em favor do consumidor”, acrescenta.
Welder cita, ainda, outras conquistas, como o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor diante de certos nichos de prestação de serviços, tais como hospitais, telefonia e serviços financeiros. “Nesse sentido podemos citar decisões de tribunais superiores que culminaram na incidência do CDC nas relações envolvendo planos de saúde — exceto os de autogestão —, a vedação a hospitais em exigir cheque-caução para atendimento de usuários de planos de saúde, a responsabilidade objetiva de instituições financeiras nos casos de fortuitos internos que levem a fraudes nas contas dos clientes, a obrigação de se estender novas promoções aos antigos clientes de operadoras de telefonia”, acrescenta.
Welder ressalta, ainda, que a atuação de instituições como Ordem de Advogados do Brasil (OAB), o Ministério Público (MP), instituições de ensino superior e, inclusive, a imprensa, tem ajudado a divulgar informações de credibilidade, fazendo com que parte da população tenha acesso a tais informações. “Ou seja, a elaboração de materiais, como cartilhas, artigos científicos, matérias jornalísticas, e eventos pontuais em escolas e locais de maior presença popular tem ajudado a população a conhecer um pouco mais os seus direitos”, pontua.
O que falta avançar
Para a especialista em direito do consumidor, Ildecer Amorim, apesar das conquistas, a relação fornecedor-consumidor ainda passa por provações. “Deveríamos acompanhar a evolução do mercado, bem como que as disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor, apesar de antigo, ainda, precisam ser defendidas, diuturnamente”, reitera. A especialista recorda, ainda, que a fiscalização do cumprimento dos direitos dos consumidores e deveres dos fornecedores deve, também, ser realizada diariamente pelos próprios cidadãos — qualquer infração pode e deve ser questionada. “Já avançamos bastante, mas muito ainda há que ser feito para proteger os consumidores”, garante.
Pelo volume de reclamações que chegam aos órgãos de defesa dos consumidores, as situações de desrespeito ao consumidor pioraram durante a pandemia. É o que explica Ildecer. “Os atrasos nas entregas, principalmente das compras realizadas pela internet, são preocupantemente, comuns. Os presentes, não raro, chegam após as datas comemorativas e, nada acontece. Ligações de celulares são propositalmente derrubadas pelas operadoras e o serviço prestado é pífio, se comparado àquele prestado pelas mesmas empresas em países considerados como de primeiro mundo", completa.
A advogada reitera, ainda, que a diminuição do número de reclamações e demandas judiciais depende muito mais da eficiência da fiscalização e da consciência e da informação dos consumidores — que vem aumentando a cada ano — do que do poder público. “O problema é que, na mesma medida em que cresce a informação dos consumidores, aumentam os problemas nos produtos e serviços. Quando houver consciência por parte das empresas ou punição efetiva daquelas que desrespeitarem os direitos dos consumidores, aí sim o número de reclamações e de ações judiciais vai diminuir. Por enquanto, o que existe é uma indústria do desrespeito ao consumidor”, lamenta.
A especialista explica: “As multas administrativas aplicadas pelos órgãos de defesa do consumidor não são pagas, porque ficam sendo discutidas por anos e anos no judiciário. Aqueles consumidores que decidem brigar judicialmente sozinhos, também sofrem com a lentidão desse poder”, diz. “Apesar destas dificuldades, cada vez mais, o dia a dia do consumidor está melhor, seja porque os consumidores estão mais informados ou porque os fornecedores estão mais conscientes da sua função no mercado de consumo. Quem maltrata o consumidor acaba sofrendo reclamações e ações judiciais, o que pode comprometer o lucro”, adverte.