Depois de dois anos enfrentando uma guerra invisível contra o novo coronavírus, os profissionais que protagonizam esse combate relatam as sequelas deixadas pela luta diária contra a doença. Mesmo treinados para lidar com a perda de pacientes e com a dor dos familiares, a rapidez e o número de mortes que a covid-19 trouxe nas alas dos hospitais repercute no dia a dia desses trabalhadores. No Distrito Federal, desde o começo da crise sanitária, 11.508 vidas foram interrompidas. Mesmo entre aqueles que sobreviveram, há quem sofra com as sequelas deixadas pela doença.
Na unidade básica de saúde (UBS) 5, os profissionais convivem diariamente com um misto de emoções. "Ao mesmo tempo em que vacinamos as pessoas e vivemos a alegria delas estarem imunizadas, damos o diagnóstico da covid-19 e vemos o desespero de quem está doente", relata o gerente da UBS, Wellington Antônio da Silva, que confessa: "o cansaço é generalizado".
Para o servidor, o motivo do esgotamento é a luta intensa e longa. "Nós nos doamos todos os dias, não importa se é feriado ou fim de semana. Vimos muita coisa nesta pandemia. Em toda a minha carreira, trabalhei em diversos locais, mas nunca cheguei ao ponto de ir para casa e me sentir desolado, como acontece nesta crise, devido ao estresse e ao cansaço", explica Wellington.
Além do adoecimento e da exposição da vida dos agentes, o presidente do Sindicato dos Médicos, Gutemberg Fialho avalia que "a demanda sobre a saúde foi crescente nos últimos dois anos e, nem sempre, os profissionais sentem que são reconhecidos pela sociedade ou pelo governo, às vezes parecem que estão esquecidos". Muitos doaram suas vidas a esta batalha: desde o começo da pandemia, de acordo com o Conselho Regional de Medicina, 12 médicos morreram de covid-19 na capital do país.
Esgotamento
Técnica em saúde da Secretaria de Saúde (SES-DF) da UBS 5 de Taguatinga e enfermeira de formação, Simone Mariz, 43, ressalta que, depois de dois anos de trabalho em ritmo exaustivo, as forças dos colegas estão "se esvaindo" e a saúde mental "se mina a cada dia". "Nosso sentimento é de soldados abatidos, que fizeram parte da linha de frente, mas foram esquecidos na história de uma pandemia. Não somos heróis, somos humanos. Não temos poderes especiais e estamos esgotados", enfatiza.
As unidades de terapias intensivas (UTIs) lotadas e os plantões exaustivos marcaram os profissionais de diversas formas. Também enfermeira, Dimitria Lemos, 40, atua no pronto-socorro do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). "Não acreditava que estava vivendo isso, não conhecíamos nada do vírus e tínhamos uma preocupação muito grande de saber qual o material de proteção adequado para conseguir evitar a contaminação e proteger quem a gente ama. Tudo era incerto, e o mundo estava apreensivo. Colegas que trabalhavam há 30 anos na área da saúde disseram nunca ter vivido uma situação igual: o pronto-socorro foi inteiramente esvaziado para receber apenas pacientes de covid-19", detalha.
A profissional destaca o esforço realizada por toda a equipe do hospital Hran e que muitos colegas sofrem de depressão, burnout e ansiedade. "Não temos uma matéria na faculdade para lidar com a morte e o sofrimento humano, então, é difícil ver o paciente morrendo e tantos passando pela mesma coisa ao mesmo tempo. A empatia é uma habilidade que a gente precisa desenvolver", lamenta.
E é, justamente, para os impactos na psique que a professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB) Larissa Polejack chama a atenção. "A exposição durante muito tempo a um fator estressante vai cansando a nossa saúde mental e é isso que está acontecendo com os profissionais de saúde: eles estão expostos à pandemia há dois anos", reforça.
Larissa Polejack salienta que a diferença entre outros atendimentos realizados pelos profissionais e o momento da pandemia é que, durante a crise sanitária, o agente de saúde está inserido na mesma situação de perigo. "Com outras doenças, há uma distância entre paciente e médico, mas, na pandemia, não há isso, porque o profissional também está com risco de ser exposto aquela mesma doença e está passando pelas perdas pessoais e o estresse do vírus", pondera. A professora afirma que o aumento da depressão e ansiedade "é um impacto real e já temos estudos que abordam isso. Contudo, diferente da onda epidemiológica, em que a taxa de transmissão vai diminuindo, a onda de saúde mental continua crescente, porque ela vai se acumulando e é uma epidemia silenciosa", alerta.
Saiba Mais
Violência
Para quem está na linha de frente, lidar com a perda de colegas que atuam em conjunto no combate ao vírus é um processo que pode gerar trauma. Na capital, 26 enfermeiros morreram por covid-19 e 1.964 foram infectados. Os dados são do Observatório da Enfermagem, do Conselho Federal de Enfermagem. "Além dos casos de mortes, temos tido casos crescentes de violência contra os profissionais, não somente verbal, mas muitas vezes física. O que mostra como a sociedade vê a nossa profissão como não essencial. De novembro para cá, temos um plantão jurídico no sindicato, porque há, pelo menos, um caso de agressão noturna por semana", revela a presidente do Sindicato dos Enfermeiros (SindEnfermeiros), Dayse Amarílio.
Para tentar lidar com a violência no trabalho, o sindicato se reuniu com a Secretaria de Saúde e a Secretaria da Mulher para elaborar uma campanha intersetorial de acolhimento para as vítimas. "É uma iniciativa que partiu do SindEnfermeiro, principalmente, porque a maioria da nossa categoria é composta de mulheres. Inicialmente, era focada nas enfermeiras, mas, agora, vai englobar todas as mulheres que de alguma forma são vítimas de violência dentro do ambiente de trabalho. A expectativa é que tenhamos algum resultado até o fim de março, com cartilhas que serão distribuídas", adianta Dayse.