Hoje, no Dia Internacional da Mulher, a última reportagem da série Novo começo retrata a história de mulheres que sobreviveram e que quebraram o ciclo de violência doméstica em que estavam inseridas. "Foi difícil, mas só Deus sabe o que aconteceria comigo se eu não tivesse denunciado", conta Lúcia, 43 anos. "Toda vez que ele voltava bêbado, eu sofria na mão dele", lembra a dona de casa. Em um desses vai-e-vem, Lúcia foi parar no hospital inconsciente. Lá, foi convencida a acionar a polícia, pois ficou com medo ao pensar no futuro dos filhos. Todos os nomes citados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade das vítimas.
No começo, o agressor "parecia um príncipe", segundo Lúcia. Após engravidar aos 16 anos, foi expulsa de casa, e o então companheiro prometeu cuidar dela. "Ele era a única pessoa que eu tinha", diz. Passados dois anos, Lúcia descobriu uma traição e ameaçou ir embora de casa. O companheiro a impediu de levar a filha pequena e bateu em Lúcia pela primeira vez. "Ele disse que era culpa minha, porque eu não fazia mais como ele queria, e se ele não tinha em casa, ia procurar na rua", detalha a dona de casa.
Depois de 11 anos, Lúcia se separou e começou uma nova vida. "Consegui um emprego de doméstica com muito sacrifício. Sem experiência, ninguém queria", lamenta. Hoje, está recuperada de todo o sofrimento. "Graças a Deus, superei. Consegui dar educação para os meus filhos que vivem seguros." Casada novamente há sete anos, a dona de casa garante que está feliz.
Dificuldade
Em apenas dois meses de relacionamento, Joana, 32, descobriu o pior lado do companheiro. Há uma semana, sob efeito de drogas, ele a agrediu na frente dos filhos, de 12 e 3 anos. "Se não fosse o mais velho, não sei o que poderia ter acontecido", conta. O menino deu pauladas no homem até que ele largasse Joana. Agora, ela tenta retomar a vida com acompanhamento psicossocial.
A denúncia ocorreu logo após o crime. "Temi pelos meus filhos que presenciaram tudo", afirma. No entanto, essa não foi a primeira vez que Joana sofreu nas mãos de um agressor. Há seis anos, ela levou um tiro no pé de um ex-companheiro, com quem tinha um namoro de dois anos. "Eu fiquei com medo, sem saber o que fazer e foi bem difícil para denunciar. Tive que tirar coragem de onde não tinha", descreve.
Sair de um ambiente de violência doméstica pode não ser tão simples quanto a maioria das pessoas imaginam. O psicólogo Luiz Henrique Aguiar, do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), explica que as agressões não são lineares e que contextos de relações abusivas funcionam de forma circular. "A violência vai crescendo de intensidade e progredindo até acontecer um pico, o episódio máximo, geralmente, é a agressão. Passada essa tensão, eles entram na fase que chamamos de lua de mel, ele presenteia, faz promessas de mudança e tenta agradar a mulher e diz que não vai se repetir", enumera Luiz Henrique.
O psicólogo ressalta que é comum a reincidência e a dependência afetiva e financeira piora a situação. "Trabalhamos com conceito de anestesia emocional. Quanto mais tempo passar em um relação abusiva, mais difícil vai ser romper, e as vítimas se acostumam com o cenário. Elas perdem a capacidade de reconhecer o nível de gravidade e de dependência emocional por meio desse processo de anestesiamento", completa Luiz Henrique.
"As mulheres são vítimas de uma estrutura patriarcal", frisa a assistente social Andreia Simplicio. Segundo ela, a violência é passada de geração para geração e, dessa forma, surge a naturalização da agressão. Socialmente, essas mulheres são compelidas a aceitar essa relação devido ao vínculo estabelecido com o homem, para cumprir o papel de esposa. "Há também a dependência econômica desses companheiros. Elas não têm autonomia financeira", explica.
Andreia Simplicio avalia que o afeto e a violência coexistem no mesmo espaço e, por meio desse ciclo, de agredir e se reconciliar, os limites ficam turvos. "Muitas vezes, as mulheres não querem sair dessa relação, elas querem que os seus maridos melhorem, se tratem, se curem. Elas querem ser amadas", acrescenta.
Fernanda Falcomer, neuropsicóloga e especialista em Impactos da Violência na Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) explica que, muitas vezes, essas mulheres não conseguem ver uma saída, porque os laços e a rede de apoio delas foram cortados. "Os impactos são físicos, psicológicos, sociais e emocionais. Trabalhar com o empoderamento feminino, a autonomia, a confiança e a autoestima é muito importante, justamente porque essa mulher, que sofre violência, perdeu, inclusive, a capacidade de acreditar nela mesma", afirma. Por vezes, as vítimas de violência doméstica apresentam sinais de estresse pós-traumático, quadros de ansiedade, depressão e até a ideação suicida.
Sombra do medo
"Aqui, eu me sinto muito segura. O meu medo, hoje, é sair", diz Regina, 48, acolhida da Casa Abrigo. Essa sensação de segurança é recente para ela, que, há poucas semanas, vivia uma realidade totalmente diferente nas mãos do seu agressor. Machucada não só fisicamente, após chegar ao abrigo Regina se fechou para outras pessoas. "Eu não conseguia falar com ninguém. Era como se o mundo tivesse desabado em cima de mim", relata.
Com a ajuda das servidoras, aos poucos a Regina mudou o comportamento. "Eu pensava que não ia mais conseguir viver, que não ia mais conseguir construir nada na minha vida. Como eu ia aparecer na frente da minha irmã e do meu filho com o meu rosto cortado?", questiona. Após o acompanhamento psicossocial, Regina passou a enxergar novamente uma luz no fim do túnel. "Elas conversaram comigo e me explicaram que estavam aqui para me ajudar. Foi um carinho imenso. O acolhimento e o tratamento, aqui, é maravilhoso. Eu falo para as colegas que estão lá fora, passando pelo que eu passei, para que elas não tenham medo de vir para cá, porque, aqui, é melhor do que casa de mãe", considera.
Agora, com a compreensão de que estava em um contexto de violência doméstica, Regina tenta retomar, aos poucos, a vida. "As pessoas precisam entender que um relacionamento abusivo deixa marcas e feridas que precisam ser curadas e, sozinha, a gente não consegue. Precisamos de ajuda", alerta a secretária da Mulher do DF, Éricka Filippelli, destacando que o empoderamento feminino é fundamental para que essas vítimas saiam do cenário de abusos. "Buscamos tirar a mulher desse ciclo e fazer com que ela tenha esperança e uma visão de futuro", finaliza a secretária.