Novo começo

Agressores confrontados com a própria violência e rastro de destruição

Conheça a história de agressores que foram confrontados confrontados com a responsabilidade por seus atos de violência doméstica e buscam um caminho de melhora

Fruto de uma família disfuncional, o fabricante de móveis Pedro Elias, 40 anos, lembra das agressões sofridas pela mãe. Recorda dos machucados que o pai deixava na genitora e do desconforto que sentia quando menino. Apesar das lembranças dolorosas, quando adulto, acabou perpetuando o ciclo de violência com a companheira. As discussões correntes no casamento de 11 anos, porque a mulher “enchia o saco”, nas palavras dele, logo se converteram em empurrões e apertões, até o dia em que a vítima decidiu dar uma basta e o denunciou.

A raiva e o arsenal de palavras de baixo calão que Pedro conhecia não o pouparam da justiça, e ele precisou responder por violência doméstica. Em audiência, a juíza determinou o pagamento de 60 horas de trabalho, mais R$ 200 para uma instituição de caridade e a determinação de que ele fizesse um curso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal voltado para homens que cometeram violência contra mulher.

Após a fúria por ter sido exposto, Pedro começou a refletir. "Quando chegou na segunda sessão, pensei que nada acontece por acaso. Se estou aqui, irei aproveitar o curso", conforma-se. Ele acredita que fez alguns progressos, sobretudo no que se refere à educação das filhas. “Eu batia nas meninas, mas nunca mais toquei nelas. Entendi que iam crescer achando que o amor era violento, porque eu sou a pessoa que dá amor para elas e que elas amam", constata.

Ele realmente tem motivos para se arrepender e temer pelas filhas. Na capital federal, em 86,5% dos casos de violência contra a mulher, a vítima tinha alguma relação afetiva com o agressor, com cônjuge ou ex-cônjuge. Desses, em 48,87% das denúncias, as mulheres sequer estavam em processo de divórcio. Além disso, entre 2015 e 2021, o feminicídio deixou 252 órfãos de mãe.

Pedro foi confrontado com essas e outras estatísticas locais e nacionais e soube o que espera por grande parte da população feminina. Em Brasília, por exemplo, duas horas é o tempo médio entre duas agressões contra mulheres. Somente em 2021, 16 mil casos foram reportados para as autoridades. "Eu comecei a entender o porquê da lei, o motivo de ela existir. Isso foi o que mais me chamou a atenção. A lei existe porque as mulheres precisam dela", afirma sobre o dados da Secretaria de Segurança Pública do DF.

Frustração e ressentimento

Foi atrás das grades que Gustavo Pereira, 37 anos, começou a purgar seu histórico de agressões. Depois de ser preso por infringir a medida protetiva, ele foi encaminhado para participar de um grupo de reflexão. "Eu culpava minha ex-mulher por acabar com minha vida, sendo que quem fez isso fui eu e ainda acabei com a dela", relata.

Criado para ser o homem da casa, o machismo estava enraizado no caráter do advogado. "Meu pai era típico homem macho nordestino. E foi com esse exemplo, que manda na mulher e, se ela não obedece, apanha, que eu cresci", reconhece. Quando Gustavo casou, ele esperava ser a figura de autoridade soberana, e as brigas saíam do controle. "Não lembro quantas vezes brigamos ao ponto da coisa ficar feia, eu sei que foram muitas. Quando eu bebia, saía de mim."

Ele conta que o orgulho e o machismo o impediam de admitir o problema. "Eu me convencia de que era culpa dela, que eu era provocado de alguma forma", diz. A chegada no curso foi permeada pelo sentimento de injustiça e revolta. "Quando a ficha caiu do que eu fazia, fiquei destruído. Acabei com meu casamento e não podia mais chegar perto dos meus filhos. Eles tinham medo de mim", recorda Gustavo.

Depois de três anos, ele ainda se considera no processo de mudança. "É uma desconstrução da realidade machista que eu cresci e formei meu caráter. Demora muito, e acho que é um trabalho para a vida inteira. Não consegui reconstruir meu casamento e nem a culpo por isso, mas hoje trato as mulheres bem melhor e tento ser pra minha mãe o que meu pai não foi e o que eu não fui para a minha mulher", completa.

O trabalho árduo de enfrentamento à cultura machista e a exposição do que a violência doméstica é, um crime, é a principal atividade do Núcleo de Atendimento à Família e ao Autor de Violência Doméstica (Nafavd). Gerido pela Secretaria da Mulher do Distrito Federal, ele propõe, por meio de grupos, a reflexão e o diálogo com os agressores encaminhados pela justiça para a compreensão e reconhecimento da responsabilidade da violência doméstica.

"É um espaço de estudo, reflexão e responsabilização. Na grande maioria das estatísticas, os homens negam e justificam a violência, culpam a mulher. Por isso, tentamos discutir a questão cultural, esse comportamento faz parte da cultura machista", explica Victor do Santos Valadares, psicólogo do Nafavd.
O profissional afirma que muitos dos homens sequer reconhecem que cometeram violência. "Um dos nossos objetivos é fazer com que eles tenham consciência de que cometeram sim uma violência, para mudar o comportamento", explica. Os resultados são vistos diariamente, no decorrer do processo por meio das atitudes dos frequentadores do grupo. "No ponto de vista prático, nós passamos a observar neles um aumento no nível de percepção e reflexão prática", afirma Victor.

Nos três meses de acompanhamentos, os agressores participam de 10 a 13 encontros onde são debatidos temas como Lei Maria da Penha, desmistificação de discursos machistas como "homem não chora", e os privilégios do homem por meio da cultura machista histórico-social, além da comunicação de sentimentos, abuso de álcool e racismo.

Raiz do problema

Os Nafavds são programas de referência nacional, nos quais a Secretaria da Mulher trabalha com os autores de violência. O programa, atualmente, é restrito apenas para casos judicializados, mas em breve será ampliado para sedes próprias. Hoje, os núcleos funcionam dentro do Ministério Público. "A ideia é que a gente tenha espaços específicos para acolher autores de violência doméstica para conversar com eles. O objetivo é que esses autores não repliquem essas agressões do passado, que mudem e percebam os erros", afirma a secretária da Mulher Éricka Filippelli. Todos esses trabalhos são feitos com o intuito de quebrar o ciclo da violência doméstica, fazendo com que o agressor, ao receber medida protetiva contra uma vítima, não vá procurar por outra.

Coordenadora de grupos reflexivos para homens do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), Márcia Borba diz que as reuniões da equipe consistem em seis encontros que atuam em dois tipos de intervenção: uma parte dos agressões é encaminhada pelo juizado de violência doméstica, e o outro advém de uma parceria com a Secretaria de Segurança Pública, que encaminha homens desse setor de segurança que têm processos baseados na Lei Maria da Penha.
Os encontros são divididos em temas: acolhimento, mitos nas comunidades, gênero e violência contra a mulher, habilidades relacionais, Lei Maria da Penha e auto responsabilização. "Não usamos o termo reeducação. Nossa abordagem é reflexão das responsabilidades, para que eles possam sair da Justiça dando significado à passagem deles aqui", afirma.

Esse é um trabalho de prevenção para futuras relações. Muitas mulheres que passam por essa situação não se separam. "A gente quer que ele consiga entender as ações que o levaram a chegar até a justiça. Nós usamos o termo homem autor de violência, não usamos agressor", pontua a coordenadora. Segundo ela ainda, a Lei Maria da Penha é bem clara sobre trabalhar com os homens e, por isso, esse trabalho é feito.
A cada três meses, 80 homens passam pelo grupo. Desde 2016, 2.300 passaram pelo método, fora os da Segurança Pública. "No primeiro encontro, eles sempre chegam com muita raiva", conta Márcia. O objetivo, no entanto, é que saiam responsáveis e melhores.

Machismo estrutural

O processo de mudança questiona confortáveis estruturas sociais que beneficiam os homens. "É preciso, portanto, mudar a cultura machista e patriarcal. É preciso mudar o machismo que incide sobre a mulher", analisa Adriana Romana, delegada da Delegacia Especial de atendimento à Mulher II. Essa educação precisa ser incentivada, primeiramente nas escolas, segundo a delegada.

Esse trabalho vem sendo feito, conforme a afirmação de Adriana. "É uma sementinha que precisa ser plantada para mudar as mentes dos futuros homens e mulheres do nosso futuro", acredita. Além do atendimento aos homens, ela diz que é importante que as mulheres se conscientizem sobre limites nas relações. Adriana exemplifica que, muitas vezes, a mulher denuncia, pede medida protetiva, se afasta e o homem vai para outro relacionamento repetir as mesmas atitudes. Por isso, é tão importante trabalhar o comportamento do agressor também.

Especialista em violência doméstica, Lia Zanotta, antropóloga da Universidade de Brasília (unB), aponta que há equipamentos e medidas para reeducação de homens agressores de violência doméstica, mas que as políticas públicas precisam ser aplicadas. "O executivo tinha que montar uma rede de acolhimento da mulher e uma rede de responsabilização para os agressores com apoio psicossocial para que eles consigam se conscientizar a mudar a mentalidade machista", aponta.

Atualmente, os Nafavds desempenham esse papel. Entretanto, a fila de espera é muito maior do que a capacidade de atendimento. No caso do núcleo de Samambaia, há pelo menos 200 homens aguardando. "O que está em jogo não é uma coisa pequena, é algo importante, é o bem jurídico mais importante que é a vida", completa Zanotta.

Ela também corrobora que homens e mulheres inseridos no ciclo de barbaridade precisam de intervenção. "Tem de haver um esforço para o aqui e o agora. Para os homens que estão batendo nas mulheres e fazendo violência psicológica agora. Precisamos de grupos de reflexão agora! Homens que estão sendo agressores agora. Precisamos enfrentar sim o problema dos agressores", finaliza.

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Quem está apto a reabilitação?

"O grupo reflexivo é apresentado junto às medidas protetivas, compulsório a suspeito ou autores. Antes mesmo da audiência, há a indicação. Muitas vezes, pode alterar cenários de violência que poderiam alcançar o feminicídio. O comparecimento dos agressores costuma ser alto. Inicialmente, ficam chateados, por não se verem como responsáveis pela violência. Aos poucos, eles percebem que é para o bem deles.
Muitos querem inclusive continuar com os encontros de grupo, mesmo que já encerrado o período. Com o apoio, se verifica que a reincidência diminui demais. Depois da violência consumada, há de se lidar com o sofrimento e com o processo de reconstrução de vínculos familiares. Mesmo no caso das separações, há a necessidade de ressignificar papéis de paternidade e maternidade que são eternos."

Joseleno Santos, psicólogo e professor, com mais de 30 anos de acompanhamento na área

Colaborou Renato Daehn

Saiba Mais

números

FEMINICÍDIO
2021: 25
2020: 17
2019: 27
2018: 25
2017: 11
2016: 20
2015: 7
2015 a 2021: 132

PERFIL DAS VÍTIMAS
132
37 anos em média
18 a 29 anos: 39
30 a 39 anos: 37
40 a 49 anos: 36
50 anos ou mais: 21

Pardo: 64,2%
Branca: 24,6%
Preta: 9,7%
NCI: 2

PERFIL DOS AUTORES
Total: 132
23 cometeram suicidio
130 homens e 2 mulheres

18 a 29 anos: 33
30 a 39 anos: 43
40 a 49 anos: 37
50 anos ou mais: 19

Pardo (a): 84
Branco (a): 25
Preto (a): 18
Nc: 5

>>> Violência doméstica
2018: 15.368
2019: 16.861
2020: 15.995
2021: 16.327