Certos comércios do Distrito Federal são tão tradicionais que quase se confundem com a região em que estão localizados. Alguns remontam aos primeiros tempos da capital federal, são pioneiros da década de 1950. O Correio visitou alguns desses lugares em busca de relatos e curiosidades, conversou com clientes e ouviu quem, lá atrás, acreditou em um projeto e acabou abrindo um negócio que se tornou emblemático. Em diferentes regiões, eles acumulam histórias e carregam carinho e afeto de diferentes gerações de moradores.
Em fevereiro de 1968, surgiu o Bazar do Papai, em Taguatinga, um legítimo armarinho à moda antiga, com artigos de costura e decoração. A mobília é a mesma desde o lançamento e foi idealizada pelo fundador Isamu Maeda, 85 anos. "Todos os móveis que estão aqui dentro da loja foram projetados por mim. Eu desenhei e mandei confeccionar", orgulha-se o pioneiro. A filha Amélia Maeda, 49, compartilha do carinho pelo comércio. Herdeira e trabalhando ativamente na loja, ela acompanha desde pequena como tudo começou: o pai e o avô, inspirados por um restaurante famoso em São Paulo, escolheram o nome e decidiram empreender.
Tânia Mendes, 64, é moradora de Taguatinga há 50 anos, e conhece o ponto comercial desde que a família se mudou para a região. Ela lembra que sua mãe, já falecida, comprava aviamentos — apetrechos de decoração e costura — no Bazar do Papai. "Ela costurava para a família e acabei aprendendo com ela. Como sou tricoteira e crocheteira, é lá que sempre encontro o que procuro. Tenho muito carinho pelos donos, que sempre prezam pelo bom atendimento", comenta. "Depois de casada, fui morar por um tempo em Minas Gerais. Minha mãe fez uns pijaminhas de flanela quando meus filhos nasceram, e ela levava o casaquinho de todos na loja para pregar os botões. De todos os que foram feitos, um eu guardo até hoje. Esse casaquinho tem 42 anos", afirma.
Parte da cidade
Em Sobradinho, o Bazar Barreto faz parte da rotina dos moradores da região há 60 anos. O nome escolhido é uma homenagem à família dos proprietários, nada de modismos, que, desde então, têm se dedicado ao comércio que oferece artigos para o lar, brinquedos e decoração. Aristides Barreto, 94, mais conhecido pelos clientes como 'seu' Barreto, lembra que começou com uma banca de camelô. "Somente com Deus e minha coragem. Com honestidade, fui juntando economias, até que consegui montar a lojinha", emociona-se. Ele afirma que os frequentadores tratam o local como a "loja da vovó". "Todo mundo gosta de vir aqui, desde crianças a idosos, e eu fico muito satisfeito com isso. Sobradinho é parte da minha família", diz. Apesar da idade, Aristides não se afasta dos clientes nem pensa em parar. "Posso até tirar alguns dias para descansar, mas logo dá saudade e eu volto, não consigo ficar sem isso daqui", brinca.
Dedicação acompanhada por moradores como Eurico Rodrigues, 47. Freguês assíduo, ele também é o cabeleireiro da esposa do 'seu' Barreto há quase 30 anos. "Dá para dizer que é uma troca, sou cliente dela, assim como ela é minha. Além disso, gosto de passar aqui para tomar o chá que eles fazem e saber como eles estão, nem que seja uma vez por semana", ressalta. "Algo de que sempre me lembro foi quando alguns comerciantes da quadra se juntaram para comemorar o aniversário de 93 anos dele", recorda.
O motorista Adriano Rezende, 58, frequenta a loja desde criança e começou com o hábito levado pela mãe. "Durante todo esse tempo, costumo vir aqui nem que seja para saber como eles estão, conversar um pouco. Por coincidência, o nome da esposa do 'seu Barreto' é o mesmo da minha mãe, Maria. Isso é mais um fator que faz eu considerá-los demais, como se fossem da minha família", garante Adriano.
De mãe para filha
Dentro da Feira do Guará, uma banca se destaca entre as muitas opções de quitutes e sabores. A Universidade do Pastel é tão tradicional quanto a própria feira. Popularmente conhecida como pastelaria do gaúcho, ela funciona há mais de 20 anos, segundo Eitor Moraes, 67, proprietário. "Comecei indicado por uma amiga e achava que isso aqui não seria bom. Eu era gerente de hotel na época, só que um dia eu me convenci, pois a popularidade da feira era boa", lembra. "No começo, eu não sabia nada de pastelaria. Jogava farinha para o alto, e o vento trazia para a minha cara, ficava todo branco. Nesse momento eu pensava: no que me meti", diverte-se Eitor. Sobre o nome e apelido, ele tem uma explicação. "A ideia surgiu pois eu tenho duas formações (acadêmicas) e acabei vendendo pastel. O apelido veio pelo fato de ser do Rio Grande do Sul", explica.
Cliente da Universidade do Pastel desde que se entende por gente, a bancária Bruna Rocha, 32, diz que, durante o passeio na feira, uma paradinha na pastelaria é uma tradição familiar. "Virou uma memória afetiva, porque é uma coisa que lembra a infância. Parar na feira, comer pastel e tomar caldo de cana é uma coisa que veio de criança. Independentemente do que a gente vem fazer aqui, sempre paramos na pastelaria, nem que seja para tomar o caldo, mesmo não estando com sede", admite. "Foi minha mãe que me influenciou. Dá para dizer que é uma tradição passada de mãe para filha. Quando eu viajo, inclusive, procuro uma feira que tenha pastelaria, justamente para me lembrar daqui. É um hábito que carrego para qualquer lugar que eu vá", conclui a bancária.
Muitas recordações
Outro estabelecimento bastante conhecido por quem mora no DF, principalmente no Plano Piloto, é a Pioneira da Borracha, fundada por Hely Walter Couto, 96. A decisão de abrir a loja veio quando o irmão de um amigo ofereceu um lote para que ele se mudasse de Belo Horizonte para Brasília, no fim dos anos 1950. Hely, que até então tinha uma alfaiataria, voltou para Minas e falou com seus funcionários sobre a novidade. "Contei que vinha para Brasília para abrir uma 'Casa da Borracha'. Um deles perguntou se já existia alguma loja do ramo, e eu disse que não, então, ele sugeriu que a chamasse de pioneira. Foi assim que surgiu o nome da loja, que teve a primeira unidade inaugurada no Núcleo Bandeirante", relembra.
Cliente da Pioneira da Borracha há vários anos, Euvaldo Mendes, 61, afirma que, depois de algum tempo, acabou criando um vínculo com o estabelecimento. "Conheço alguns funcionários, quase com um vínculo de amizade, e é bom vir aqui. Um tio, que mora próximo, começou a me trazer aqui. Eu aprendi o caminho e, até hoje, tenho carinho. Prefiro comprar aqui do que em algum shopping. Mesmo quando eu não preciso de nada, passo aqui na loja e acabo levando alguma coisa", revela o aposentado.
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