Francisco Celso Leitão Freitas é um observador privilegiado do que acontece de negativo e de positivo nas periferias do DF. Professor, especialista em educação inclusiva, mediador social e produtor cultural, ele atua no território do conflito dos jovens. Criou uma pedagogia inovadora, baseada no hip-hop, para educar e reeducar estudantes do ensino médio, o projeto RAP (Ressocialização, Autonomia e Protagonismo), que acumula prêmios nacionais e internacionais.
Em 2018, ganhou o Prêmio Itaú Unicef; em 2019, o Prêmio Ring of Peace, na Rússia. Em 2020, ficou com o prêmio Práticas inovadoras na educação pública do DF; e figurou na lista dos 50 melhores professores do mundo, no Global Teacher Prize, considerado o Prêmio Nobel da Educação, tornando-se embaixador da Varkey Fundation no Brasil.
Atualmente, ele é professor de história do Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Santa Maria. Celso vê a atual explosão da truculência entre estudantes da periferia do DF, com casos chocantes de esfaqueamentos e de ameaças com armas, como expressão da potencialização de todas as formas de violência na sociedade. Nesta entrevista ao Correio, ele afirma que o melhor caminho para resolver ou minimizar o problema é envolver a comunidade escolar no debate. O governo tem de retirar do papel o projeto de lei para uma cultura da paz e precisamos de mais justiça social, mais livros e menos armas.
Como o senhor percebe a onda atual de violência de estudantes nas escolas? Qual a singularidade deste momento no Brasil e em Brasília?
A escola é uma microrrepresentação da sociedade, se está ocorrendo dentro da escola, está ocorrendo, também, fora dela. Todas as formas de violência estão potencializadas, neste momento, inclusive com a violência do Estado na negação ou precarização dos serviços fundamentais. Temos mais de 15 milhões de desempregados. Muitos jovens não veem mais a escola como prioridade, não a enxergam mais como um local de transformação. Acho que essa é a singularidade deste momento. Por mais que a escola seja o local que representa a luz no fim do túnel, ela também reproduz o que acontece na sociedade.
O que a escola pode fazer para criar um ambiente de paz?
Existem questões estruturais envolvidas, sozinha ela não dá conta. Mas ela pode ter uma atuação importante. O papel dela é pegar tudo de ruim que está acontecendo como pauta de debate. A comunidade pode apontar os caminhos para superar ou minimizar esse momento difícil. Muitas violências são reproduzidas culturalmente, as formas de preconceito, o machismo, a homofobia e o bullying estão presentes na escola. E, muitas vezes, os adolescentes não vão à escola por não se sentirem acolhidos. As pessoas naturalizam esses preconceitos, reagem, são tidas como violentas, mas, algumas vezes, estão sofrendo violências no cotidiano da família, do bairro ou da escola. Tem de trazer esses temas para a sala de aula. Não adianta negar, cada escola precisa assumir o que está acontecendo e pensar em formas colaborativas de enfrentar o problema.
E o governo, o que caberia a ele fazer, no caso específico do DF?
O Estado tem uma lei distrital de 2011, proposta pela ex-deputada distrital Rejane Pitanga, que torna obrigatório o ensino da cultura de paz e dos direitos humanos nas escolas, priorizando as de maior vulnerabilidade. Só que virou letra morta, não foi levada adiante. Caberia ao Estado promover essas ações. Como disse, essas violências são reproduzidas culturalmente. Se você é educado em um contexto de violência, só dará respostas violentas. Cabe ao Estado promover cursos de formação, que capacitem os professores para trabalhar com o tema da cultura da paz de maneira transversal com outros temas do currículo. São três eixos a serem explorados: direitos humanos, diversidade e sustentabilidade. Só que, muitas vezes, os professores não estão preparados. E não é só uma questão do professor. Os conflitos podem envolver alunos e alunos, alunos e professores, professores e diretores, diretores e funcionários. É preciso haver um programa para se criar um ambiente de paz, senão o projeto tende a fracassar.
O senhor poderia exemplificar com uma experiência bem sucedida de um projeto de cultura da paz em escolas?
Quando eu trabalhava nas escolas regulares, fiz parte de um projeto chamado de Estudar em Paz, implantado no Centro de Ensino Fundamental 602 do Recanto das Emas, em 2011. Formamos duas turmas de alunos, professores e servidores. Conseguimos várias transformações positivas. A maioria dos que tomaram à frente das ações era de meninos e meninas que sofriam alguma forma de exclusão. Tornaram verdadeiras lideranças e impulsionaram muitas transformações, não só no campo dos conflitos interpessoais. Mapearam as principais contendas e pediram intervenções pedagógicas dos professores. Se era racismo, eles norteavam a ação dos professores. Fizeram abaixo assinado, por iniciativa própria, coletaram assinaturas de toda a comunidade escolar e a levaram à direção. Em 2012, foi a única escola que teve todas as carteiras trocadas. Havia um aluno cadeirante que não frequentava todos os espaços da escola. A partir da mediação social, eles perceberam que aquilo era uma violência e realizaram demandas para resolver o problema.
O que é mais urgente fazer para combater a violência?
É trazer a violência para o debate. Não existe fórmula pronta da paz. Quem mais conhece o problema é a comunidade escolar. Essas pessoas têm de ser escutadas de fato. Às vezes, a escola abriga alunos de comunidades diferentes. Isso já é uma violência. O menino do Itapoã não tinha de ir para a escola do Guará. O alto escalão da Secretaria de Educação tinha de ir para essas comunidades, ouvir atender, de fato, as demandas. Não adianta apagar incêndios agora. Tem de buscar a vacina para prevenir. E uma das ações fundamentais é fazer com que a lei distrital de uma educação para a paz, de 2011, funcione de verdade. Não existem remédios que façam milagres, algumas vezes, a violência tem causas estruturais. Mas é preciso, ao menos, minimizar os conflitos.
O senhor criou uma pedagogia a partir do rap, premiada nacional e internacionalmente. Por que explorou esse caminho na educação de jovens da periferia?
Primeiro, é preciso fazer com que o jovem se sinta acolhido em sala de aula. Vai estudar arte e vê a arte europeia, quando está mais próximo do grafite na rua. Como terá vontade de ir para escola se ela não acolhe o modo de falar, ser e vestir? Tudo que faz é criminalizado. Por isso, passei a valorizar esse potencial. Como disse Paulo Freire, os alunos não são copos vazios. Na periferia do DF, os jovens carregam essa potência do movimento hip-hop com eles. Comecei a usar o rap para discutir vários temas. Se tem casos de racismo, trabalho com Negro Drama, dos Racionais; Carta da Mãe África, do Gog; se é preconceito contra a mulher, recorro ao rap do grupo Atitude Feminina. Trabalho no sistema socioeducativo tem muito sistema automutilação, Amar-Elo do Emicida, valorização da vida. A gente não para pra pensar se é significativo para eles. Quando percebem que é significativo para eles, vão gostar da aula, ter carinho pela escola.
Um dos aspectos chocantes das agressões envolvendo estudantes nas escolas do DF é o fato de que os colegas assistem e filmam os atos de violência como se assistissem a um jogo de videogame ou a uma luta de MMA. Que interpretação o senhor faz do fato?
As violências continuam reverberando nas plataformas digitais e nos aplicativos. E, muitas vezes, começam ali. Está vendo uma briga e não está preocupado se um colega vai se machucar. Vai filmar e buscar visualização nas redes sociais. Se alguém sofre acidente, faz uma selfie. Esse é outro tema a ser debatido em sala de aula: a relação doentia com as redes sociais. Mostra um modo de vida que não condiz com a realidade. Posta um prato de comida sofisticado, quando come pão com ovo. Nós, educadores, precisamos fazer uma intervenção para ensinar a utilizar as redes como algo saudável.
Como vê a perspectiva de liberação das armas para a população. Qual impacto essa medida, a ser votada pelo Senado, terá na violência dos adolescentes nas escolas e fora dela?
Primeiro, não acredito em paz armada. Aliás, arma e paz são antagônicos. Estamos vivendo um momento de culto às armas. Gera um fascínio nos jovens. Eles acabam enxergando isso como um símbolo de poder. Tem um grupo de rap do Recanto das Emas, chamado Quadrilha intelectual, que compôs a canção Eu fui mais um. O refrão diz: "Em busca do pote de ouro/no fim do arco-íris/eu fui mais um recrutado pelo crime/iludido com os rifles/sonhando em ser livre/eu fui mais um." Infelizmente, todos os dias tem mais um. Temos de lutar por uma sociedade com mais livros, mais educação, mais direitos fundamentais para todos e com menos armas.
Como avalia as políticas públicas de segurança e o impacto delas na contenção ou na expansão da violência dos jovens e entre os jovens?
Não consigo enxergar um futuro próximo melhor. A gente optou por um modelo falido de tolerância zero da década de 1990. Ao menor delito, encarcera. Hoje, temos a terceira população carcerária do mundo, e a violência só aumentou. A violência de adolescentes no Brasil tem índices quase que de guerra. Basta comparar a situação com a de países que investiram em bem-estar social e qualidade de vida para todos. Em 2012, a Holanda fechou oito presídios. A Suécia fechou quatro presídios em 2014. Eles oferecem educação de qualidade, emprego, renda digna, saneamento básico. Em um contexto como esse, para que um adolescente vai se desenvolver pela vida infracional? A escola é um dos nossos pilares, mas se não vier acompanhada de justiça social, dificilmente teremos uma sensação de segurança para as instituições de ensino e para toda a população.
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