Pedaços de esculturas no chão marcam o rastro de destruição deixado no terreiro de candomblé Ilê Axé Omò Orã Xaxará de Prata/Ofa de Prata, na zona rural de Planaltina. O espaço foi vandalizado em um ato de intolerância religiosa no Distrito Federal. Na manhã de ontem, um homem invadiu e destruiu 18 esculturas de orixás e o monumento Cruzeiro das Almas, usando um facão e uma marreta. O suspeito que alegava ser um pastor "enviado por Deus" foi preso ainda ontem. O caso é investigado pela Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Religiosa (Decrin). Mulheres e crianças estavam no terreiro e presenciaram o ataque. Responsável pelo local, a yalorixá Suely Gama lamenta: "Foi desesperador".
O criminoso teria aparecido no terreiro ainda na noite anterior. Com xingamentos e aos gritos, ele ameaçou as pessoas que estavam no local. "Disse que era pastor e que o Deus dele estava mandando exterminar as esculturas", lembra Suely. Na manhã seguinte, o invasor surge no terreiro com um facão e uma marreta em mãos. De acordo com o material cedido ao Correio, ele aparece visivelmente alterado. No final da gravação, foge pela mata. O Batalhão Rural da Polícia Militar esteve no local e um boletim de ocorrência foi registrado na Decrin. Após escapar, o suspeito foi encontrado na unidade básica de saúde (UBS) do Vale do Amanhecer. "Ele foi imobilizado e a polícia o levou para a delegacia", conta Suely. Segundo yalorixá parentes do agressor o levaram à UBS, pois ele estaria em surto.
Suely destaca que as esculturas fazem parte do Vale dos Orixás e foram desenvolvidas por meio de um projeto da comunidade, que contou com a ajuda de jovens e crianças da região, além de um escultor deficiente visual, irmão da yalorixá. "A construção do Vale foi um projeto que durou seis meses e tinha como objetivo fazer um resgate cultural. Em 2016, inauguramos o espaço", detalha a religiosa.
O terreiro existe há dez anos, e já sofreu com atos de atos de vandalismo, mas, segundo Suiely, há anos não era alvo de intolerância. "Agora, fica o medo né? Vamos tentar arrumar as coisas. O Vale foi construído por meio de doações de pessoas que, realmente, acreditavam no projeto do bosque, que sonhavam com um espaço cultural, sagrado, com o intuito de manter viva a nossa identidade. É tentar construir, mesmo que sem condições para isso", adianta.
Liberdade de fé
Segundo dados da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, existem 710 terreiros catalogados no DF, sendo que cerca de 550 estão em áreas particulares. "Na rua que se tem o terreiro, há pessoas de religiões contrárias às nossas e que são ignorantes, a ponto de atacar sacerdotes ou sacerdotisas. Então, enquanto não conscientizarmos essas pessoas, não vamos seguir em frente, estaremos sempre estagnados", diz o presidente da entidade, Rafael Moreira.
Para Rafael Moreira, o poder público tem papel fundamental para evitar esse tipo de prática criminosa. "O Estado dá assessoria, ajuda em eventos, deu a moeda social para legalizar terrenos em áreas públicas. Mas precisamos de uma pasta que dê visibilidade à causa", ressalta. O presidente da federação pondera que casos de intolerância religioso acontecem dentro dos órgãos oficiais. "Não temos autonomia para entrar na Câmara Legislativa com nossos trajes, como padres e pastores. Temos que pedir autorização. Enquanto houver separação entre nós e o Estado, vamos ser minoria. Temos mais de 100 mil adeptos do terreiro, fora os simpatizantes. Ao todo, é uma média de 400 mil. Precisamos reconhecer a causa", protesta.
O advogado Elianildo da Silva Nascimento, da Coordenação Executiva do Comitê Distrital de Diversidade Religiosa e da coordenação de Políticas de Proteção e Promoção da Liberdade de Crença, ressalta que a mudança desse panorama no DF depende do esforço de igrejas e lideranças, em assumir compromissos de atuar em favor do diálogo e do conhecimento, atacando a ignorância e o preconceito. "Aquele que for vítima deve procurar a Decrin, delegacia especializada, para que possa haver a ação do Estado para coibir esses crimes, ao tempo que podemos mensurar o número de ocorrências e, assim, estruturar políticas públicas", reitera.
Por meio de nota, a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) repudiou o ataque. "Compreendemos o corrido não somente como ofensa, hostilização, perseguição, preconceito e discriminação, mas também como uma forma tentada de impor a materialização da figura do demônio em templos de religiões de matriz africana, o que é inadmissível."
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.