A memória de Brasília

Correio Braziliense
postado em 14/03/2022 00:01

Brasília tem história viva a cada esquina. Sim, esquina. Essa voltinha que há no encontro de duas vias é o que chamo de esquina. E viva porque tem muitos de seus pioneiros respirando o ar fresco do que plantaram décadas atrás. "Plantei e estou colhendo", me contou dona Alaíde, com as mãos cheias de acerolas vermelhinhas colhidas do pé. Estava passeando pela quadra, talvez o primeiro passeio desde que a caçula veio ao mundo, e tentava me desligar dos pensamentos sobre as tarefas que se acumulavam na casa.

Paciência para lidar com a mais velha, que queria a todo o tempo empurrar o carrinho da irmã, e serenidade para aproveitar os momentos ao ar livre. Tentava focar nessas duas metas e, de tanto pensar, claro, só consegui as atingir pela metade. Mas quando a gente se permite abrir o olhar e não cegar para o mundo à nossa volta, as coisas acontecem naturalmente, com o perdão do que pode parecer um trocadilho.

Uma das primeiras moradoras da quadra da Asa Sul, dona Alaíde também viu crescer as raízes do Flamboyant semeado há tanto tempo. Distraída, não perguntei muitos detalhes. A bem da verdade, ela quem puxou papo comigo, que estava ali observando as coisas ao lado das meninas.

Durante os breves minutos que conversamos, ao longo de nossos respectivos passeios matinais, ela me contou que o marido, que partiu há 15 anos, ajudou a plantar algumas das mangueiras da quadra. Essas da qual minha primogênita colhe manga do pé para o lanche da tarde. "Dez mangas, mamãe!" E assim ela aprende a se alimentar melhor, a conviver e a respeitar os espaços coletivos, a interagir com todos, com pets, bichis nativos e a curtir a beleza das plantas.

Esses são alguns dos privilégios que os passeios numa das áreas mais nobresb da cidade modelo permitem viver. Ainda não me encontrei novamente com do dona Alaíde, mas aquele papo de vizinhas me fez refletir sobre a oportunidade que temos de esbarrar -- no sentido mais banal e carinhoso da palavra -- com pessoas que fizeram a história de Brasília, e me lembrar da importância de guardar essa memória, seja em reportagens, vídeos e áudios rememorando momentos marcantes, seja em conversas pelas quadras e entrequadras desse nosso templo vivo.

Essas experiências também permitem perceber a realidade mais crua e cruel dos tempos difíceis que atravessamos. Enquanto trocava uma ideia com uma babá da quadra, passou um homem pedindo informação. Precisava chegar ao antigo Cine Karim para fazer um exame. Não era a primeira vez que pedia ajuda. Outra pessoa o havia ignorado e apertado o passo assim que o viu. "Não é porque sou preto que sou bandido", disse, decepcionado. Lamentei e pedi desculpas pelo cidadão que o tratou com tamanho desprezo. Que este ano decisivo ainda possa trazer momentos de felicidade para todos os que tanto precisam, dentro e fora das bolhas que habitamos.

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