A cerca de 40 minutos do centro de Brasília, a Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale) acolhe 54 adultos com HIV e 78 crianças de 0 a 16 anos — destes, um adolescente é soropositivo. As 47 casas verdes, localizadas na Chácara 11 da quadra 108 do Recanto das Emas, compartilham a paisagem com hortas, mangueiras e outras plantas nativas. Para quem foi abandonado pela família e amigos devido ao vírus, a Fale tornou-se um ponto de apoio e um vínculo que ultrapassa o sanguíneo. Tão perto do centro da capital, os moradores enfrentam uma distância mais difícil de ser vencida: a do preconceito. Muitos foram abandonados, esquecidos ou se refugiaram nos braços da Fraternidade, na qual, entre iguais, encontraram dignidade.
Izabel Cristina Guimarães, 69 anos, é uma das responsáveis pelo lugar. Ela descobriu que tinha o vírus há 20 anos. "Primeiro, fui para o hospital até descobrirem o que eu tinha, porque tudo que eu comia, vomitava. Era muito magra. Foi então que descobri. Depois uma tia me trouxe para cá e esqueceu que eu existia", confessa. Apesar disso, Izabel ressalta: "aqui a gente se torna uma família, quem não tem uma, encontra aqui". Izabel chegou ao lugar há 16 anos e, desde então, trabalha como telefonista. "Dependemos de doações, não temos nenhuma ajuda específica do governo. O meu foco é ajudar principalmente as crianças, porque os adultos se viram, mas as crianças precisam de fraldas, de biscoito e de mais atenção. Uma criança pedir uma coisa e não ter, é muito triste", destaca.
As casas são separadas em dormitórios de solteiros e casas de família. "As crianças não têm o HIV, mas muitas nasceram aqui. Hoje temos duas pessoas que estão com a Síndrome da Imunodeficiência Humana (Aids), que estão de cadeiras de rodas", conta. Além das doações, a Fale realiza um bazar com as roupas e outros objetos que ganha. "Primeiro, o que é arrecadado é dividido entre as pessoas que estão precisando. Depois que cada um pegou o que precisa, nós levamos para o nosso bazar, que fica logo na entrada do Fale e funciona de segunda a sexta. Aqui a gente precisa realmente de todo tipo de doação", ressalta.
Contágio
De acordo com dados da Secretaria de Saúde, entre 2016 e 2021, 4.298 casos de infecção pelo HIV e 1.787 casos de Aids foram noticiados. A média anual é de 1.015 casos novos de HIV e Aids. "Até o fim de janeiro de 2022, foram notificados 71 casos novos de HIV e Aids. Atualmente, se observa uma tendência de redução do coeficiente de detecção dos casos de Aids por 100 mil habitantes, enquanto que, em relação ao HIV, manteve-se em patamar de 22,6 casos por 100 mil habitantes, o que pode indicar o aumento da detecção precoce de infecção pelo HIV, antes da evolução da doença", aponta a pasta.
A Saúde avalia que o tratamento possibilita que cerca de 92% dos pacientes com HIV no DF estejam com carga viral indetectável, "reduzindo a chance de desenvolverem infecções oportunistas ou até mesmo de transmitirem para outras pessoas. Por isso, hoje em dia o tratamento também é sinônimo de prevenção". Os medicamentos são fornecidos na rede pública pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em nove Unidades Dispensadoras de Medicamentos. A SES mantém 11 serviços de referência no tratamento de HIV com cerca de 12 mil pacientes que recebem tratamento e medicamentos antirretrovirais. As unidades básicas de saúde oferecem testes rápidos e preservativos e a Rodoviária do Plano Piloto tem o Núcleo de Testagem e Aconselhamento com testagem rápida para HIV, sífilis e hepatites virais.
Abandono
"Foi bem complicado receber o diagnóstico, não estava preparada. Sendo fiel no relacionamento e descobrir que estava com HIV", desabafa Rafaela Alves Pinheiro, 32 anos, que contraiu o vírus do marido. No primeiro momento, Rafaela ficou revoltada com o diagnóstico, mas depois descobriu a existência do Fale de Uberlândia. Lá, conseguiu acompanhamento médico e psicológico. "Entendi que havia pessoas que tinham HIV e que levavam a vida normalmente. Depois disso, meu marido morreu em um acidente e eu pedi para ser transferida para a Fale daqui (DF), porque minha família morava aqui. No entanto, é raro meus pais virem me ver e é difícil eu visitá-los", lamenta.
Na avaliação de Rafaela, o motivo da dificuldade dos pais aceitarem o HIV é a mente fechada. "Eles separam o garfo, a colher e o meu prato e isso gera um constrangimento. Não me sinto gente como as outras pessoas. O vírus não é transmissível igual eles pensam que é. Por causa dele (HIV) não deixamos de ser humanos, a gente sofre muito com essa indiferença. Em empregos também, quando a pessoa descobre que somos soropositivos, a gente não é contratado", afirma. Atualmente, Rafaela está grávida de 8 meses e, apesar dos desafios, encontra na Fale uma família.
Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e coordenadora do Projeto Com-Vivência do Hospital Universitário de Brasília (HUB), voltado a pessoas com HIV, Eliane Seidl destaca que "as únicas maneiras de transmissão com evidência científica são a relação sexual com soropositivos sem camisinha, devido a troca de fluidos sexuais, e isso quando a pessoa tiver com carga viral muito alta; na questão sanguínea, de seringas infectadas, acidentes de trabalho com profissionais de saúde e as mulheres gestantes que podem passar (para o filho) o HIV durante a gestação, durante o aleitamento e durante o parto", detalha.
Eliane destaca: "suor, lágrima, urina, fezes e saliva não transmitem o HIV". Outro ponto avaliado pela professora é o estigma sofrido pelas pessoas soropositivas. "Isso tem mudado. Há, sim, um nível de preconceito na sociedade, mas cada dia temos vencido essas barreiras. O que acontece para o preconceito é a desinformação", afirma. Além disso, a especialista destaca a importância de realizar os exames que detectam o vírus. "O aconselhamento é fazer a testagem em qualquer pessoa que avalia que teve o contexto de risco. No entanto, temos um percentual da população sexualmente ativa que nunca realizou o teste", assinala.
Acolhimento
Silvano Graciliano, 47, descobriu a Fale há cinco anos, no pior momento da doença. Realizando acompanhamento no hospital de Base, ele descobriu a existência da Fraternidade e foi buscar apoio. "Eu estava com muitos sintomas, com perda de visão, perdendo a memória e fraqueza nas pernas. Hoje, não tenho a visão de um dos olhos. Foi assim que cheguei aqui, há cinco anos. Antes morava em Águas Lindas, mas aqui é tranquilo, é a casa da gente", diz.
No entanto, alguns chegaram ao local de forma inusitada. Marilene Viana, 35 anos, encontrou o lugar há oito anos, quando não tinha para onde ir, e sem ter o vírus. "Morava em uma invasão em Taguatinga. Os barracos eram todos colados. Do lado do meu houve uma briga e os moradores colocaram fogo. Como tudo era de madeira e colado, o meu também pegou fogo. Foi a maior correria. Eu perdi tudo e fui para a beira da pista com os meus três filhos, na época meus filhos tinham de 1 ano, 6 anos e 10 anos. Foi então que me falaram da Fale e perguntei se eles me aceitariam aqui. Sabendo da minha situação, a Jussara me disse que não tinha lugar sobrando, mas que eu podia vir. Hoje, sou coordenadora daqui", narra.
Depois, Marilene encontrou um companheiro na Fraternidade. "Tomamos todos os cuidados, e faço o exame constantemente. Nem eu, nem os filhos que tive com ele têm o vírus", reforça. "Mas seguimos toda a rotina de cuidados e atenção com os medicamentos. Contudo, nem sempre a família tem esse acolhimento. A família do meu esposo, por exemplo, acaba separando os pratos, a comida, os talheres, a roupa. Isso é triste porque abala, né?"