A notícia do congolês espancado até a morte em um quiosque da orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi uma das mais tristes que li nos últimos tempos. Deixou-me desalentado. É o Brasil mostrando o que tem de pior: a covardia, o ódio aos pobres, em vez de inconformismo com a pobreza; o ódio aos negros, em vez de indignação com o racismo.
Mas eis que leio uma notícia desanuviadora: o Vasco da Gama, primeiro clube a acolher os negros no futebol, promoveu, em seu estádio, um jogo entre um time de refugiados congoleses e um de brasileiros. É uma pequena iniciativa, no entanto, alentadora, pois o futebol é aquela zona de confraternização das raças em um país com o peso de 400 anos de escravidão. A partida dá visibilidade aos refugiados. Embora esteja soterrado, esse Brasil solidário, comunitário, compassivo e agregador também existe.
Brasília tem muitos vascaínos. A notícia do jogo me levou até a história do Vasco registrada no clássico História do negro no futebol brasileiro, de Mario Rodrigues. Acompanhemos a narrativa do irmão de Nelson Rodrigues. A princípio, os brancos reinaram absolutos, pois os estudantes filhos da elite carioca tinham tempo de sobra para treinar. A molecada negra e mulata ficava nas imediações dos estádios à espera que algum beque mais grosso desse um chutão e jogasse a bola fora para roubá-la.
Logo a febre do novo esporte se alastrou pelas ruas dos subúrbios, em infinitas peladas com bolas de meia, onde se reinventou a rigidez do football inglês, acrescentando-lhe o balanço do samba e a ginga da capoeira: o football virou futebol, expressão cultural brasileira, dança improvisada e imprevisível. Os primeiros negros e multados começaram a despontar nos clubes da elite.
Mas não se imagine que essa ascensão foi automática. O jogador Carlos Alberto passou pó de arroz no rosto para embranquecer a pele e jogar no aristocrático Fluminense. O craque Arthur Friedenreich atrasava o início dos jogos nos vestiários, tentando amansar o cabelo rebelde de mulato filho de pai alemão com mãe negra.
Em 1923, ninguém prestou atenção no Vasco da Gama, time patrocinado pelos comerciantes portugueses, que, na boa tradição lusitana, misturou negros, mulatos e brancos bons de bola. Vasco Campeão.
Em represália, a liga dos clubes da elite branca baixou portaria exigindo que todos os jogadores escrevessem o nome e tivessem vínculo empregatício. Uma covardia, pois o acesso dos negros e mulatos à escolas era muito difícil. Mas não adiantou: com a profissionalização, o futebol tornou-se o primeiro espaço realmente democrático da sociedade brasileira, onde não vale o pistolão, o nome de família ou o dinheiro.
É preciso impor-se pela competência, a habilidade e o talento. O futebol driblou, espetacularmente, o racismo, mostrando que, como disse Câmara Cascudo, o que o Brasil tem de melhor mesmo é o brasileiro. Eu só faria uma pequena retificação: o que o Brasil tem de melhor são alguns brasileiros.
A ação do Vasco em solidariedade aos migrantes congoleses me fez esquecer, por alguns instantes, o anti-Brasil triunfante. Recentemente, Gabigol foi alvo de xingamentos racistas e nenhum jogador se manifestou. Os clubes de futebol e os jogadores precisam sair da bolha de alienação e da internet e acordar para o Brasil. É muito bom quando o Brasil é Brasil.