O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos de pessoas abaixo dos 18 anos. No entanto, para uma parcela dessa população, a realidade é outra, e, muitas vezes, cruel. Dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal mostram que, entre 2020 e 2021, foram registrados 836 estupros de vulneráveis na capital do país. Ontem, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) prendeu um homem, de 59 anos, acusado de abusar sexualmente de uma criança de 12 anos. À época do crime, a vítima tinha 11 anos e era violentada na frente da irmã, de 9.
Os estupros aconteciam na casa das vítimas, em Santa Maria. O suspeito morava próximo. Ele se aproveitava dos momentos em que a mãe e o padrasto das meninas saíam para trabalhar e entrava na residência. Após uma denúncia feita ao Conselho Tutelar, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) começou a investigar o crime. "Colhemos imagens das câmeras de segurança que registravam o homem entrando e saindo da casa. Ele cometia os abusos e, em seguida, dava R$ 2 ou R$ 5 para elas não falarem nada", detalhou a delegada-titular da DPCA, Simone Pereira.
O homem, que trabalha como vendedor de máscara de proteção facial na rua, não tem passagens pela polícia. Em depoimento, o predador acusou as vítimas de o terem "seduzido". Ele foi preso temporariamente por 30 dias e responderá por estupro de vulnerável. A polícia segue com as investigações para identificar se o acusado fez outras vítimas.
Com base no levantamento da SSP-DF, em 2020, foram registrados 444 estupros de vulnerável. No ano passado, o número foi de 392, uma queda de 11,7%. Apesar da redução, o acolhimento e atenção das autoridades precisam ser essenciais no combate a esse tipo de violência.
Acolhimento e escuta
Falar sobre uma possível violência sexual não é algo fácil, principalmente em relação a crianças e adolescentes. É preciso um acolhimento para que as vítimas não sofram mais com a situação. Entre os equipamentos públicos que atuam na proteção de vulneráveis está o Centro Integrado 18 de Maio, na 307 Sul. O espaço coordenado pela Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) oferece escuta especializada às vítimas e aos familiares. Em 2021, foram realizados 572 atendimentos no local.
Com uma equipe composta por assistentes sociais, pedagogos e psicólogos, o centro é uma porta de entrada para encaminhamento em relação às medidas protetivas e de responsabilização dos agressores. A psicóloga Tatiana Moreira, 39, conta que o espaço serve, especialmente, para evitar a revitimização das crianças e adolescentes. "Muitos dos acolhidos chegam, aqui, encaminhados pelo Conselho Tutelar. Há, ainda, as demandas espontâneas, mas é muito pouco. A gente, então, escuta essa possível vítima, sem induzir ou forçar. Em um espaço protegido, de uma forma bem tranquila", explica Tatiana.
A família também é ouvida, e todo o contexto é analisado, como as condições de moradia, a relação com os parentes e a situação na escola. A partir dessas informações, é possível encaminhar para outros equipamentos, como delegacias, Ministério Público, programa pró-vítima, centros de atendimentos psicossocial (Caps), entre outros. "Já aconteceu de a família ser encaminhada para uma casa abrigo, por estar em um contexto de violência mais grave. A gente também orienta a família para que consiga sair desse ciclo", pondera Tatiane. "Alguns casos de violência vêm acompanhado de outros tipos de violação. É muito comum que algumas crianças que passam por esse tipo de situação também tenham no contexto familiar em que a mãe sofre com a violência doméstica", finaliza.
Ciclo interrompido
Delegada aposentada da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA), Patrícia Bozolan destaca que a maioria dos casos de violência entre crianças e adolescentes ocorre em âmbito familiar. "Uma pequena parcela vem de contextos externos. E a nossa maior preocupação é em relação ao abuso sexual, que é muito perverso. Pois, em muitas das situações, a palavra da vítima é colocada à prova, questionada. Nos casos de maus tratos, não tem tanta resistência em relação à veracidade dos fatos", avalia. Para ela, há muita subnotificação, em que a família acaba silenciando o menor de idade e abafando as agressões.
"E quando esse silêncio quebra, a família racha também. Alguns ficam do lado do agressor, duvidando da situação. Se é criança, está inventando. Se é adolescente, está mentindo. Isso ocorre, em especial, nos casos de agressão sexual, em que é a palavra de um contra o outro", exemplifica Patrícia. De acordo com delegada aposentada, a maioria das ocorrências de violência sexual que chegam às delegacias é de meninas de 8 a 12 anos. "São dados reprimidos, porque muitos meninos abusados por outro homem têm vergonha de contar e não chegam a denunciar, e, nos poucos casos em que envolve mulheres, eles entendem como uma iniciação precoce", analisa Patrícia Bozolan.
Com o intuito de prestar atendimento especializado a mulheres e vulneráveis, Patrícia fundou, com a delegada aposentada Ana Cristina Santiago, o Instituto RevEllas. Um espaço destinado ao atendimento integrado que promove consultoria jurídica, acolhimento, consultorias e outros encaminhamentos. "Pude ter uma outra perspectiva da realidade dos casos de violência doméstica com a iniciativa privada. É um fato que essa prática não ocorre apenas na classe social mais baixa. Recebemos famílias com maior poder aquisitivo que têm preocupação com escândalos e querem ter a certeza dos fatos antes de denunciar. E isso é ruim, porque não precisa de uma prova para acionar a rede de proteção. Basta ter um indício, e a investigação vai determinar se ocorreu ou não", ressalta.