O combate à violência contra a mulher foi o foco do programa CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília — desta segunda-feira (7/2), que recebeu Rejane Jungbluth Suxberger, juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), e autora do livro Invisíveis Marias, histórias além das quatro paredes e Violência doméstica e o Sistema de Justiça. Mestre em gênero e igualdade e doutoranda em ciências sociais, na linha de gênero e igualdade, Rejane falou sobre o processo do encerramento do ciclo de violência, e reiterou a importância da denúncia, que segue sendo uma das principais aliadas na luta contra o fim dos crimes de gênero.
Segundo a especialista, a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas. “Ela só perde para a Espanha e o Chile e, ainda assim, quando entrou em vigor, trouxe muita influência destes países. Ela não tem problemas, tem um arcabouço muito grande de enfrentamento à violência, e um dos principais pontos são as medidas protetivas”, diz. A especialista explica que quando há casos em que a mulher sofre violência, mesmo com a medida protetiva, isso não significa ineficácia. “Pelo contrário, quantas mulheres a medida protetiva tem salvado? O que ocorre é algo que nós, do sistema judiciário, temos reiteradamente reforçado nas salas de audiência para que não aconteça: para que elas não se aproximem, porque eles vão tentar se aproximar, usando argumentos”, cita.
São desculpas, que vão desde a entrega de algum documento até prometer que a violência não vai se repetir. “Todos os casos que acompanhei durante os quinze anos de magistratura, de mulheres que tinham a medida, foram casos como esses, em que havia encontros com agressor. É como se fosse uma armadilha. O DF, o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), o Ministério Público do DF (MPDF) têm várias medidas, mas a vítima deve contribuir com o sistema, não encontrando e denunciando”, reforça.
Arrependimento
“A maioria dos agressores não reconhece que praticou uma violência”, explica Rejane. De acordo com a especialista, a maioria se sente numa situação de injustiça, não entende e fala que não é bandido, que não cometeu crime. “Ao serem questionados se praticaram alguma violência contra a esposa ou filha, a resposta que tinha era 'mas ela é minha filha, ou minha mulher'. Esse sentimento de propriedade, ainda é muito forte na sociedade, nos nossos lares. Eles se sentiam em uma situação de injustiça”, pondera.
Atualmente, o TJDFT possui alguns programas com universidades que oferecem o acompanhamento do agressor com algum psicólogo, enquanto tramita o processo judicial. “A ideia é fazer com que eles possam entender a causa. Que eles possam reconhecer que aquele tipo de comportamento é errado e que hoje existe uma lei que proíbe. Durante muitos anos o direito chancelou a violência contra a mulher. Tivemos legislações em que era possível ocorrer o feminicídio, desde que houvesse justificativa de uma traição. Essa mudança estrutural que precisamos na sociedade acontece a passos lentos, infelizmente”, ressalta.
Violência psicológica
Apesar de difícil detecção, Rejane diz que a violência doméstica começa pela violência psicológica. “Se a violência surgisse com agressão física, nenhuma mulher permaneceria neste ciclo de violência. A violência psicológica é como um ciclo de cera, em que a mulher não consegue diferenciar a violência do amor. Ela toma como cuidado do homem, o ciúme exacerbado, a proibição do uso de roupa. Ela começa a se sentir valorizada. E tudo aquilo que deixa uma pessoa desconfortável, ou inibe qualquer iniciativa, é uma violência”, relata.
Seja psicológica ou física, a especialista reitera que o número de casos tem aumentado: o Distrito Federal registrou, no ano passado, o segundo maior número de denúncias do tipo nos últimos 12 anos: 16.327, resultado inferior apenas à quantidade de 2019, que foi de 16.861. “O feminicídio não surge do nada, ele surge de uma sociedade arraigada no patriarcado, machismo”, pontua. Rejane explica, ainda, que durante a pandemia houveram muitos casos de subnotificação. “O normal foi retirado das famílias, crianças, e isso gera uma tensão grande. No início da pandemia, tivemos casos de subnotificação. A impressão que dava é que a pandemia tinha diminuído a violência, quando na verdade tinha aumentado, porque a mulher não tinha como sair de casa, não podia denunciar o autor. Eu presenciei casos em que a mulher não podia prestar depoimento on-line porque ela estava com o agressor em casa”, cita.
Perfil das vítimas
Segundo a especialista, o perfil das mulheres que vão até as salas de audiência para falar sobre a violência que sofreram em casa é de pessoas que cresceram em lares violentos, onde a submissão e o silêncio da figura feminina eram naturalizados. “Isso reflete nos seus relacionamentos com os agressores, que naturalizam a relação de poder, e ultrapassaram seu lugar de fala dentro do ambiente doméstico, privado'', explica.
Rejane reforça, ainda, que na maioria dos casos, a mulher não tem consciência de que está em uma situação de violência. “Eu sempre cito uma cientista política islandesa que fala que o amor é uma explicação do patriarcado. Então o que a gente observa é que desde muito cedo, o homem vive um processo de socialização diferenciada, e tem um cuidado desproporcional em relação à mulher. Ou seja, é como se o homem necessitasse do cuidado e que a mulher é a responsável por isso”, diz. “É comum ouvir na sala de audiência que a mulher não quer romper o relacionamento porque acha que vai dar fim à família, e que é sua obrigação, como mulher, aguentar a violência para que isso não aconteça”, completa.
Assista a entrevista completa: