Assassinada brutalmente pelo ex-genro enquanto estava a caminho do trabalho, a empregada doméstica Ana Cristina Farias de Araújo, 51 anos, está na triste estatística de mulheres vítimas de violência doméstica. Nesse caso, especificamente, a história de Ana terminou de maneira brutal, mesmo após ela ter recorrido às medidas protetivas contra Marcos Fernando Domingos, 26, preso por feminicídio. Em 2021, houve o segundo maior número de denúncias registradas por violência doméstica nos últimos 12 anos, com 16.327 casos, menor apenas que em 2019 (16.861). Os dados foram obtidos em primeira mão pelo Correio, por meio da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). À reportagem, o secretário da pasta, Júlio Danilo, explica que o aumento dos registros está relacionado à redução da subnotificação desses crimes e, de certa forma, ao crescimento populacional.
O número total de denúncias no ano passado ,ostra que, em média, cerca de 44 mulheres sofreram algum tipo de agressão por dia, seja ela física, psicológica, sexual ou patrimonial. Com base na série histórica, 2010 foi o ano com o menor quantitativo de ocorrências criminais desse tipo, com 10.858 casos.
No topo do ranking dos tipos de incidência de violência relacionadas à Lei Maria da Penha, no DF, em 2021, 87,7% das vítimas sofreram agressões moral ou psicológica, o que inclui injúria, ameaça, difamação, perturbação da tranquilidade e stalking. Foi o caso de Ana Cristina. Em janeiro deste ano, ela registrou boletim de ocorrência contra o ex-genro por ameaça e solicitou medidas protetivas. Na decisão, a Justiça proibiu o homem de se aproximar da ex-sogra, determinou o limite mínimo de distância em 500 metros e proibiu o contato dele com a mulher por qualquer meio de comunicação ou intermédio de terceiros.
Em 38,9% dos casos, as mulheres sofreram algum tipo de violência física, como lesão corporal, vias de fato, homicídio tentado e consumado. Nesse caso, inclui-se os feminicídios. Segundo apurado pelo Correio, o assassinato de Ana é o terceiro na capital do país em decorrência de gênero. Em 2021, foram 25. Na terceira colocação, 21,11% das vítimas sofreram patrimonialmente (dano, violação de domicílio, furtos ou roubos). Em 4,0% dos casos, elas foram agredidas sexualmente (estupro, importunação sexual ou violação sexual).
Mariana Nery, advogada especialista em direito da mulher, cita as proteções asseguradas pela Lei Maria da Penha às mulheres. Entre elas está o afastamento do agressor do lar, a transferência da mulher e de seus dependentes menores de idade para casas-abrigos, prisão preventiva ou uso de tornozeleira eletrônica para o acusado. "O aumento no número de feminicídios praticado por agressores que possuíam uma medida protetiva ativa ocorre devido à negligência dos agentes públicos em levar a sério a violência doméstica e cumprir a Lei. A meu ver, a solução é fiscalizar os agentes públicos que deveriam realizar esse papel, é nítido que o sistema não tem funcionado", critica.
Recorte por região
Entre 2020 e 2021, das 33 regiões administrativas do DF, 18 tiveram aumento no número de ocorrências por violência doméstica. Fercal aparece em primeiro lugar, com 25% de crescimento. Na cidade, o número de casos passou de 84, em 2020, para 105, no ano passado. Na Estrutural, em um ano, foram registradas 89 novas denúncias, seguido pelo Núcleo Bandeirante, que passou de 105 para 122 ocorrências.
Por outro lado, 15 cidades apresentaram queda ou se mantiveram estável. Foi o caso da Candangolândia, que passou de 115 para 76 casos em 2021; Ceilândia (de 2.205 para 2.097); Gama (de 883 para 835); e Planaltina (de 1.321 para 1.296).
Os dados da SSP-DF detalhem os locais onde aconteceu a violência. Em 2021, na maioria dos casos (96,89%), as mulheres foram agredidas em casa ou apartamento. Entre outros ambientes, estão estabelecimentos comerciais (1,02%), via pública (0,38%), hospital (0,09%), escola (0,08%) e praça (0,05%).
Os dias da semana de maior incidência de violência, no período de janeiro a dezembro de 2021, continuam sendo sábados e domingos, com 39% de participação do total. A faixa horária de maior incidência é das 18h às 23h59, com 38% das ocorrências, ou seja, no período da noite.
Na avaliação do secretário da SSP-DF, Júlio Danilo, as vítimas se sentem motivadas a procurar ajuda na medida que há incentivo às denúncias, mostrando que existem ações coordenadas do governo para protegê-las e acolhê-las. "Temos uma campanha na SSP/DF chamada Meta a Colher, com a ideia de que em briga de marido e mulher nós devemos, sim, meter a colher. Ampliamos, ainda, os canais de denúncia, por meio da Delegacia Eletrônica e do Maria da Penha On-Line, da Polícia Civil, que permitem até pedidos de medidas protetivas. Em mais de 70% dos casos de feminicídios, não havia registro de violência anterior. Ou seja, a denúncia permite a atuação dos órgãos responsáveis antes que crimes mais graves aconteçam", ressalta o secretário.
Quanto ao descumprimento de agressores que tinham medidas protetivas, houve aumento de 28,5% no número de acusados que desrespeitaram as regras e continuaram a se aproximar ou a perseguir as companheiras ou ex-companheiras.
Três perguntas para
Júlio Danilo Souza, secretário de Segurança Pública do DF
Tivemos um caso recente de feminicídio, em que a vítima e a filha dela tinham medidas protetivas contra o agressor. Mesmo assim, o homem perseguiu a ex-sogra, entrou no mesmo ônibus que ela, desembarcou e a matou. Até que ponto as medidas protetivas são eficazes?
As medidas protetivas são expedidas de acordo com critérios objetivos e subjetivos definidos pelo Judiciário. E, de acordo com cada caso, o grau de proteção pode aumentar, de uma simples proibição de frequentar locais pré-estabelecidos, passando pelo monitoramento por meio de dispositivos eletrônicos, chegando à prisão. Nesse caso em específico, havia um pedido de prisão expedido uma semana antes e foram feitas três diligências na tentativa de localizá-lo, mas, infelizmente, ele se manteve foragido e conseguiu se encontrar com a vítima. Em cerca de 24 horas, ele foi identificado, localizado e preso pela Polícia Civil.
Temos visto tantos casos de agressão e feminicídio em que as vítimas têm medidas, mas continuam sendo perseguidas e mortas. As medidas protetivas são as únicas saídas de proteção à mulher?
As medidas protetivas são eficientes e fazem parte de uma série de mecanismos de proteção e enfrentamento à violência de gênero. Costumo sempre dizer que a violência doméstica é um problema que tem que ser enfrentado por todas as esferas da sociedade, com transparência, debate e integração. A cultura da denúncia nesses casos é essencial para que haja um acompanhamento desde o início. Mais de 80% dos casos de feminicídio acontecem dentro de casa, dentro do ambiente familiar. Portanto, para que toda a estrutura disponível para proteger a mulher possa ser acionada, é preciso que se tenha conhecimento o quanto antes.
Para 2022, quais os planejamentos e as ações novas da secretaria para combater esse tipo de crime?
Lançamos, em março, o Mulher Mais Segura, que reúne uma série de iniciativas da SSP/DF e das forças de segurança, entre elas uma tecnologia inovadora no Brasil, que monitora, simultaneamente, vítima e agressor, impedindo que ambos se encontrem, atendendo a solicitações do Judiciário. Esperamos ampliar esse monitoramento em 2022. Em dezembro, o Governo do Distrito Federal (GDF) criou a Rede Distrital de Proteção à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar. Esse mecanismo oficializa nossas ações conjuntas e permite que a gente siga avançando com nossas políticas de prevenção, acolhimento e combate a todo tipo de violência de gênero.