Novo começo

O desafio de denunciar a violência doméstica e retomar a vida

Diante da escalada de casos de agressões por parte de maridos e companheiros, mulheres precisam de apoio para se desvencilharem de relações perigosas e reassumirem o controle dos próprios caminhos

Ana Luisa Araujo
Renata Nagashima
postado em 27/02/2022 06:00 / atualizado em 02/03/2022 16:59
Casa da Mullher Brasileira, local em Ceilândia para dar apoio as mulheres vítimas de violência  -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Casa da Mullher Brasileira, local em Ceilândia para dar apoio as mulheres vítimas de violência - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A cada duas horas, pelo menos três ocorrências de violência contra a mulher foram registradas no Distrito Federal ao longo de 2021. Nas 16.327 denúncias registradas na Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), os principais relatos são de injúria, ameaça e lesão corporal. Complexo, o ciclo de violência pode durar anos e, para muitas mulheres, rompê-lo é a diferença entre a vida e a morte. De 2015 a 2021, 132 mulheres morreram vítimas de feminicídio, sendo 25 apenas no último ano. Vidas interrompidas por decisão de quem um dia falou de amor.

Com dois filhos, aos 44 anos, Cláudia da Silva (nome fictício), conhece bem o caminho árduo para escapar de um relacionamento que quase acabou com a sua vida. Ela chegou a trabalhar para sustentar as crianças e o marido alcoólatra. Entre idas e vindas, muitas vezes, a tentativa de manter o casamento a aproximou de uma tragédia.

Do céu ao inferno

Eles se conheceram ainda na infância e chegaram a namorar na adolescência, mas perderam contato. Anos depois se reencontraram e, apaixonados, rapidamente casaram. "Ele parecia ser o homem perfeito", lembra. Após a boda, Cláudia e o marido foram morar no Canadá e os problemas começaram. "Ele bebia e ficava muito violento. Não parava em um emprego e eu precisava trabalhar por nós dois", afirma.

No começo eram ofensas. Não demorou para que Cláudia fosse responsabilizada pelas frustrações diárias do marido e passasse a ficar controlador. "Primeiro, ele controlava onde eu ia e com quem. Eu não podia ter amigos que ele sempre dizia que não eram de verdade, que eu só tinha a ele, que ele era o único que me amava, e que tinha aberto mão de tudo no Brasil por mim. Eu acreditava naquilo", afirma.

Ela admite que demorou para perceber que o relacionamento não era tão perfeito, mesmo quando ele passou a jogar coisas na direção dela. Para Cláudia, juntos eles superariam o mau momento. "Estava vivendo um inferno e acreditava que era só uma fase", declara.

Grávida, ela decidiu voltar ao Brasil para contar com a família, mas ele não aceitou. A jovem, que relevava a agressividade do marido porque ele nunca havia batido nela, rompeu essa barreira. "Foi a primeira vez que me bateu. Ele me bateu muito. E eu não tinha a quem recorrer, nem o que fazer. No dia seguinte, era como se nada tivesse ocorrido, cheguei a pensar que estava louca", diz. Machucada, ela comprou a passagem e fugiu do marido.

Alguns meses depois, o agressor voltou ao Brasil, com promessas de que mudaria, e responsabilizando a esposa por afastá-lo da filha. As coisas voltaram a ser boas, antes de ficarem ruins novamente. "Foram anos assim, eu saía de casa e acabávamos voltando porque ele me fazia acreditar que eu precisava dele", conta Cláudia.

Refletindo, ela afirma que chegou a se acostumar com a rotina de agressões e tentava se conformar, já que tinha vergonha de revelar o horror que vivia. Até que um dia ela se atrasou após perder o ônibus e apanhou tanto que os filhos ficaram em pânico. "Eu podia ouvir as crianças chorando na sala e tentando abrir a porta. Eles gritavam e eu só queria sair dali e abraçar eles. Mas ele não deixou, me trancou no quarto e bateu nas crianças para elas pararem de chorar", recorda.

Redenção

"Eu não queria mais isso para os meus filhos e nem para mim", decidiu-se. No dia seguinte, ela pediu ajuda a uma tia e, enquanto ia a uma delegacia, a tia buscou as crianças na escola e as levou para a casa do pai de Cláudia. Lá, ela sabia que seus filhos estariam protegidos.

Na delegacia, mesmo acolhida, ela afirma que não foi fácil relatar todos os abusos. "Foi difícil ter que contar. Sentia que estava traindo ele e tinha medo do que ele pudesse fazer quando descobrisse o que eu estava fazendo", reflete.

Na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), Cláudia conheceu seus direitos e foi amparada. "Eu e as crianças tivemos acompanhamento psicológico e assistência durante todo o processo de divórcio. Foi difícil, mas graças ao auxílio que recebi, depois de 10 anos consegui me ver livre do inferno que vivi", complementa.

Aos poucos, o sentimento de insuficiência e a baixa autoestima plantada, ao longo dos anos, por seu agressor, deu lugar a uma mulher capaz de sorrir e ver beleza na vida. "Depois de 10 anos, renasci para uma vida que não sabia que existia", emociona-se.

Busca por ajuda

Infelizmente, nem todas têm a chance de recomeçar. A média de idade das vítimas de feminicídio no Distrito Federal é de 37 anos, em sua maioria parda (64,2%), seguida por brancas (24,6%) e mulheres pretas (9,7%).

Para a delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher II (DEAM II), Adriana Romana, o caminho para reduzir essas estatísticas é profundo. "Temos que mudar a cultura do machismo patriarcal. Isso precisa ser trabalhado nas famílias e nas escolas. Já iniciamos esse trabalho porque é uma sementinha que vem sendo plantada para mudar as mentes de futuros homens e mulheres", acredita.

O Distrito Federal tem avançado na implementação de políticas públicas contra violência doméstica. O ponto de partida é a denúncia, para que haja um acompanhamento especializado e a avaliação da pertinência de medida protetiva e os próximos passos.

A delegada destaca que além da delegacia, há outros locais que oferecem assistência por meio de informações. "Muitas falam que não queriam fazer registo policial e têm medo do que pode acontecer com os parceiros, mas elas podem apenas conversar sobre a violência e o suporte oferecido, porque a violência é gradativa e você perde o controle", completa Adriana Romana.

A psicóloga e pesquisadora do grupo Saúde Mental e Gênero da UnB Maisa Guimarães confirma que os problemas relacionados à violência doméstica são marcas de um ideal machista. "O engrandecimento do homem, a culpabilização da vítima em casos amorosos e a difícil visualização de relacionamentos abusivos são vertentes sempre presentes nas ocorrências", enumera.

Informação e conscientização são as ferramentas nessa luta, segundo a secretária da mulher, Éricka Filippelli. Para ela, é necessário engajar a sociedade para que o enfrentamento à violência contra a mulher seja uma causa coletiva. "A pessoa em situação de violência muitas vezes não tem condições de avaliar os riscos que está correndo", acrescenta Filippelli.

Em prol da visibilidade ao enfrentamento à violência contra a mulher, o Correio vai contar outras histórias de superação e recomeço frente ao machismo na série Novo começo.

*Colaborou Júlia Eleutério

Infográfico ajuda para mulheres
Infográfico ajuda para mulheres (foto: Lucas Pacífico)

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Perguntas e respostas sobre tipos de violência - Secretária da Mulher Éricka Filippelli


Violência psicológica também e violência?
Em 2021 o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.188 que altera o Código Penal e estabelece a violência psicológica como crime. Se você está vivendo ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, perseguição e insultos, você deve buscar ajuda porque você está vivendo uma situação de violência psicológica.

Posso denunciar somente na DEAM?
Você pode realizar em qualquer delegacia circunscricional uma denúncia de violência doméstica. Você também pode usar outros canais que foram criados durante o tempo de pandemia, como o boletim de ocorrência online, pelo site da PCDF. Além da denúncia, também pode requerer medida protetiva. Também, é importante quevocê conheçao app Proteja-se, que foi desenvolvido justamente para estabelecer um canal de denúncias para as mulheres em situação de violência.

Há serviços de acolhimento que ajuda a entender os tipos de violência que a vítima está vivendo? Como sair dessa situação? Esses serviços garantem sigilo e segurança?
Sim, existem os equipamentos gerenciados pela SMDF, como os CEAMs, a Casa da Mulher Brasileira e os NAFAVDs. Nesses equipamentos temos equipe técnica especializada que irão te acompanhar, acolher e prestar todas as informações necessárias.

E para quem vive com o agressor, há um local seguro para a mulher ser acolhida com os filhos?
Existe a Casa Abrigo. Lá você estará em plena segurança porque o endereço é sigiloso. Você também pode levar os filhos e receber todo o acompanhamento. Para garantir o sigilo e a segurança, o acesso à Casa Abrigo é feito pelas DEAMs.

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