A riqueza dos povos africanos que integra a formação do Brasil está expressa em diferentes manifestações culturais, como dança, música, culinária e na religiosidade. Proibidos de praticar seus cultos e de falar o idioma materno, os escravizados encontraram no sincretismo religioso uma maneira de burlar a opressão e manter viva uma parte de suas raízes, que só conseguiu a tolerância estatal em 1890 quando o país se tornou laico, apenas 10 anos após o fim da escravidão. Mesmo assim, até hoje os adeptos de religiões de matriz africana sentem o peso do preconceito e resistem às investidas de autoritarismo religioso.
Num cenário em que 59% dos crimes de intolerância religiosa na capital federal são voltados às religiões de matriz africana, hoje, 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, os terreiros e centros de umbanda, candomblé e quimbanda do Distrito Federal reafirmam a sua fé e a luta pelo respeito à diversidade.
O Ogã — integrante religioso — da casa de umbanda Casa Vovó Joaquina, Manoel Pessoa, 53 anos, esclarece que a Umbanda tem por princípios de vida a humildade, caridade e praticar o bem. Valores que estão à altura do desafio que é existir frente a quem não compreende a diferença e, aos poucos, tem dado frutos. "Hoje em dia nossa Casa tem uma convivência muito boa com a vizinhança, mas nós já sofremos certos tipos de intolerância. Uma vez fizeram um movimento em nosso condomínio para que não fizéssemos mais nossos cultos, mesmo com eles sendo durante o horário permitido e o engraçado era que nesse condomínio existia um culto evangélico e não havia reclamações quanto a ele, apenas quanto ao nosso", lembra Manoel, sobre um episódio que ocorreu no condomínio em que sua família morava.
Presença
No DF, a presença de centros vem aumentando. Atualmente, existem mais de 300 centros de religiões de matriz africana por toda a capital, segundo um mapeamento feito em 2018 por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), pelo Centro de Cartografia Aplicada (CIGA) em parceria com a Fundação Palmares. De acordo com os dados levantados, a atuação dos dirigentes religiosos e dos praticantes têm sido fundamental para reverter os medos por parte de quem não compreende essas religiosidades, ao mesmo tempo, eles narram experiências difíceis movidas por preconceito.
O professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Eurico Antônio, esclarece que a intolerância está atrelada ao passado escravocrata do país, porque africanos e sua cultura passaram por um processo de inferiorização.
O babalorixá Adaildo Lopes, 53 anos, mais conhecido como Pai Adaildo por seus filhos de santo em sua casa Ilê Omim Asé Ogun Onirê, atribui a intolerância à falta de conhecimento histórico no país. "Na minha opinião falta educação, se tivéssemos mais informação no país, automaticamente, teríamos mais respeito. É necessário o investimento em políticas públicas oferecendo informações sobre a cultura afro-brasileira, sobre de onde viemos, como chegamos aqui", conta.
Adaildo também destaca a importância da mídia nesse processo. "Acho muito importante que a mídia e os meios de comunicação ofereçam a oportunidade de podermos nos expressar e acredito que a população e os governantes precisam nos encarar com outros olhos e dar mais voz para essa luta para sermos respeitados", ressalta. "Nós louvamos a força da natureza e os orixás, então acredito que a comunidade precisa saber disso! Nós vamos vencer essa batalha, chegamos até aqui, porque somos um povo resistente, então nós somos resistência e vamos resistir até o fim", acrescenta.
Crime
O presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília, Rafael Moreira, compreendeu ainda jovem o peso da diferença. "Eu sou umbandista desde que nasci, minha mãe tem um terreiro na cidade do Gama, já nasci dentro da religião. Já aconteceram atos de vandalismo no nosso terreiro, inclusive, uma vizinha ateou fogo nele. Fizemos ocorrência e tudo, mas como tem muitos anos, naquela época ainda não havia toda essa proteção que existe hoje em dia contra a intolerância religiosa", afirma Rafael.
A trajetória da Ialorixá Elisabeth Alves, 61 anos, mais conhecida como Mãe Beth, não foi diferente. Ela afirma que os comentários desagradáveis são frequentes e que a luta contra a intolerância não está tendo fim. "Eu nunca sofri ataques diretamente, apenas alguns comentários, que não deixam de ser intolerância, mas tive vários colegas aqui da minha cidade que já sofreram muito com isso e a gente vem nessa luta há muitos anos. Nossa luta está sendo eterna. Eu não vejo a diferença, todos nós somos seres humanos", acrescenta.
A delegada-chefe da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), ngela Maria dos Santos, confirma que a raiz dos atentados está na distorção religiosa impactada pela escravização dos povos negro. Historicamente, tudo que é relacionado aos não cristãos é demonizado, então, é necessário que haja uma desconstrução.
De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, em 2021, foram registradas 22 ocorrências de discriminação religiosa em todo o Distrito Federal. A Decrin foi inaugurada em 2016 com estrutura especializada para o enfrentamento de crimes de intolerância religiosa. A punição para esse tipo de ocorrência vai de um a três anos de reclusão e é possível denunciar pelo 197.
*Estagiária sob a supervisão de Juliana Oliveira