Se você quiser imaginar o que é um país sem memória, basta pensar em nossos momentos de lapsos, em que esquecemos o nome de um filme, de um lugar ou de uma pessoa. E a memória cultural está bastante ameaçada por uma ação deliberada de desinvestimento nas instituições de preservação da cultura. Um país sem memória é um país de cabeças cortadas, sem referências, sem saber quem é, submetido a todas as manipulações e dócil a todos os despotismos.
Recebi de presente um livro que tem como título uma espécie de manifesto nestes tempos de obscurantismo e desmemória: Preservar é preciso, de Carlos Augusto Dauzacker Brandão, com a colaboração de Myrna Silveira Brandão. O livro documenta a atividade quase invisível, mas essencial, da restauração de obras seminais do cinema brasileiro: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha; O homem que virou suco, de João Batista de Andrade; O país de São Saruê, de Vladimir Carvalho.
É dramático ser autor de um filme, mas, em razão da falta de condições de conservação, vê-lo se deteriorar é ter a sensação de perder a obra para sempre: "Ter meu filme O homem que virou suco restaurado foi como ter o filme de novo, depois de considerá-lo perdido, tal o desgaste dos negativos originais", diz João Batista de Andrade, diretor. E o nosso Vladimir Carvalho comenta no livro: "Gosto de imaginar que foi São Saruê, o santo sertanejo, que enviou arcanjas à Terra com a missão de salvarem o meu filme da deterioração".
Em uma enquete promovida pelo Museu de Arte Moderna de Nova York com críticos, Deus e o Diabo na Terra do Sol ficou entre os 10 melhores filmes da história do cinema. Se não fosse restaurada, essa obra-prima estaria inapelavelmente perdida para sempre. Os cangaceiros de Glauber são tão metafísicos quanto os jagunços filósofos de Guimarães Rosa, mas, também, imbuídos de consciência política dilacerante.
Corisco berra um discurso shakespeariano na caatinga. E o beijo de Corisco e Rosa, no meio do descampado, com a câmera girando ao som de uma Bachiana de Villa-Lobos, é um dos momentos epifânicos dos cinemas brasileiro e mundial.
Enquanto isso, São Saruê é um clássico do documentário brasileiro, com o estilo contundente, seco e descarnado. É como se Graciliano Ramos se armasse de uma câmera e filmasse, a palo seco, as agruras dos sertanejos habitantes da região agreste situada nos vales do Rio do Peixe e do Rio Piranhas. Os dramas social e humano da estrutura agrária do Nordeste são escancarados em um misto de poema dramático e denúncia documental, como dizem os autores do livro.
Depois da recuperação do filme, Carlos Augusto Dauzacker Brandão presenteou com um DVD de O país de São Saruê o cineasta grego Costa Gravas, que registrou o impacto da recepção ao documentário de Vladimir: "Um filme forte, tocante, revolucionário. Enfim, maravilhoso!".
O livro de Carlos Augusto e Mirna não apenas documenta a batalha dos profissionais da restauração, mas, também, mostra a relevância de preservar a memória cultural. Contribui para ampliar a consciência sobre nosso patrimônio cinematográfico e sobre o estado de barbárie cultural em que vivemos. É inaceitável que nossos filmes corram o risco de desaparecer por falta de cuidado, investimento ou consciência.