O primeiro dia do ano é tradicionalmente um momento de fazer novos planos e promessas. É chegada a hora de tentar coisas novas, construir histórias e fazer ainda mais memórias. O clima de despedida de 2021 e de esperanças para 2022 traz à tona as promessas de uma vida nova, e isso também se faz presente nas comunidades religiosas do Distrito Federal. Na comunidade budista da capital federal, o ano de 2022 surge sob a promessa de um tempo novo. Isso porque, após 26 anos na regência do Templo Shin-Budista de Brasília, Ademar Kyotoshi Sato, conhecido como Monge Sato, irá deixar o cargo para passá-lo a um novo comando. "Vou entregar o cargo a um jovem que tem menos que a metade da minha idade, mas representa a tradição do budismo japonês, pela pureza da formação doutrinária sem veleidades e pela beleza refinada dos rituais. Tem alma japonesa e o seu coração está se tornando brasileiro", disse.
Na quarta matéria da série "Um Novo Olhar para 2022", Sato anunciou a novidade, e reiterou que possui novos planos. "Estou me retirando do templo, mas não do budismo. Ao contrário, vou assumir a liberdade e a universalidade que a comunicação on-line permite, e sem as restrições institucionais da regência, vou me dedicar à comunidade maior através das redes sociais e no atendimento de solicitações de meditação aberta e palestra", informou. Sato foi um dos responsáveis pela estruturação do budismo para a capital federal e conta que a chegada de 2022 representa a porta de novas oportunidades, não só para a comunidade religiosa, mas também para o DF como um todo.
Em entrevista ao Correio, o monge falou sobre a importância da religião e da fé para enfrentar os desafios advindos da pandemia, e reiterou a importância de virtudes para novos aprendizados. "Já me disseram que sou otimista-idealista, porque tanto a simplicidade, humildade e generosidade como o seu oposto, isto é, a arrogância, a ambição e a ignorância compõem o coração brasileiro. Por que não? Por isso que me tornei budista". De acordo com Sato, a vivência em comunidade deve ser pautada pela liberdade em viver a diversidade. "Temos a capacidade e a potencialidade de integrar não só o amor, a coragem, e a tenacidade dentro da composição etária e cultural de jovens, adultos e idosos cuja complexidade é representada pela própria sigla LGBTQIA , ou seja, a liberdade de ser e viver da própria humanidade assumindo a diversidade", completa.
O senhor comentou que está completando 80 anos e deixando a regência do templo. Foram quantos anos no comando do templo?
São 26 anos na regência do templo e acho que chegou a hora de me aposentar, porque a impermanência da vida é também um processo democrático. Se eu continuo, é como se eu quisesse implantar minhas ideias, mesmo que sejam inadequadas. Então, a democracia, o revezamento é o nosso sistema social mais adequado. Se fiz alguma renovação, ela dialoga com a tradição. O monge que vem, tem menos que a metade da minha idade, mas representa a tradição japonesa. Ele é japonês, tem uma formação no Japão, nasceu em Hiroshima, que é uma cidade símbolo da modernidade depois da Segunda Grande Guerra, da bomba atômica. Ele é muito bem-vindo com este revezamento da renovação que eu fiz. Eu nunca tinha sido monge, me aproximei do budismo depois dos 50 anos. Fiz o que pude fazer com o coração brasileiro. Digo isso porque meu pai nasceu no Brasil, embora minha mãe fosse japonesa. O monge vem com essa alma japonesa e nossa responsabilidade é que o coração brasileiro dele cresça.
O senhor viveu uma infância difícil, estudou economia e direito na juventude, casou-se, teve filhos, e, após anos, fez a escolha pela vida no budismo. Agora, depois de tudo o que viveu, e se despedindo da regência do templo, qual a avaliação que faz dessa escolha e deste tempo à frente do templo?
Antes de me tornar regente do templo, eu tive uma experiência mundana de mais de 50 anos, e, mesmo depois de me tornar monge, eu trouxe essa experiência, esse conhecimento da vida mundana, política e social para o budismo. Então, se fiz alguma renovação, foi trazer para dentro do templo tudo isso que aprendi, que tive como experiência fora do templo. O templo era como se fosse uma fortaleza que poucos frequentavam. Era cercada, os portões se abriam em dias especiais, e a vizinhança até estranhava, porque eram todos japoneses que frequentavam o templo. E essa foi a primeira inovação que fiz, de abrir os portões do templo para a comunidade de Brasília. O templo foi designado patrimônio histórico da capital federal e o budismo, de alguma forma, teve esse reconhecimento social. No budismo, há a marca dos três tesouros. Uma é a comunidade, e normalmente ela é restrita, fechada. Eu abri dizendo que o budismo acolhe as pessoas que sofrem. E quem não sofre hoje em dia? Ainda mais com a pandemia. O segundo tesouro são os ensinamentos do Buda, aquele que viveu da Índia, VI séculos antes de Jesus. Mas também dos seus atualizadores. E, de alguma forma, esse budismo tem alma japonesa, mas eu trouxe para o coração brasileiro para que fosse amado pelo povo. E o terceiro tesouro é o Buda, que é representado pelos atualizadores, regentes do templo, que são uma representação do Buda e, de alguma forma, representantes do Buda, seja no amor, fé ou esperança.
O senhor reiterou ainda, que está saindo do templo, mas não do budismo. Como pretende passar esse novo tempo, quais são os novos projetos?
Adotando e assumindo essa linguagem de vocês, a informática. Até hoje, eu tenho medo do telefone, aquele monstrinho preto, que nem existe mais. Isso é uma revolução comunicacional. Ou seja, usar a comunicação on-line. Claro que a comunicação presencial é importante, pelo toque do olhar, da mão, do abraço. Sentimos isso durante o confinamento. Então a presença é importante. Mas também aprendemos que muita coisa pode ser on-line. Então, porque não aproveitarmos essa comunicação? Estou disposto a aprender essa linguagem. E, quem sabe, fazer com que esse pessoal que esteja precisando de orientação para ter uma mente tranquila, possa se aproveitar de uma orientação budista através dessa comunicação on-line.
Quem irá assumir a regência do templo? O senhor fez essa escolha? Como funciona?
É a ordem. No meu caso, eu voltei do Japão quando terminei o curso de formação de monges e o bispo me pediu para assumir a regência do Templo de Brasília. Eu não entrei no curso com essa intenção, mas ele me ordenou. Ou seja, toda ordem tem que ter hierarquia e respeito a isso. Então quem indica o novo monge é o bispo, que fica em São Paulo. Ele é jovem também, mas indicou esse monge, que nunca tinha tido experiência em ser regente de um Templo e ele foi designado. Mas a sua indicação depende da comunidade local, isso foi outra inovação. Então quem tem direito a indicar é o bispo, mas a comunidade local, os associados do Templo, deve aceitar esse nome. No dia 16 de novembro fizemos a assembleia local e o novo monge foi apresentado à comunidade. Estamos esperando a designação oficial da ordem, em São Paulo, para que seja oficializada a sua regência, que começaria imediatamente.
Como acredita que será o trabalho de agora em diante?
Eu disse no começo que fé, amor e esperança são ensinamentos do budismo. Talvez o budismo japonês não use essas expressões. Eu tenho usado esses termos porque é o Brasil. Para o coração brasileiro, fé, amor e esperança tem uma compreensão direta. Eu espero que o novo monge faça crescer o coração brasileiro, já que vai ficar por aqui. Que ele desenvolva o coração brasileiro, até porque o budismo, na sua origem, fala da fé como confiança, do amor como solidariedade e da esperança como desenvolvimento cultural da raça humana.
Este ano foi marcado pela retomada de atividades que foram cessadas no ano passado, mas a pandemia deixou rastros e marcas que não devem ser apagadas da história. Neste ano de 2021, quais foram as questões que mais precisaram ser trabalhadas dentro da sua comunidade?
Em 2021 procuramos atender a todas e a todos que sofrem em acolhimento igualitário, pois a pandemia não discrimina cor, gênero, origem, nacionalidade, etnia, credo, condição econômica ou convicção política. Aliás, o próprio budismo sempre pregou isso e hoje a moderna tecnologia de comunicação o permite de forma ampla.
A partir da experiência que você teve com sua comunidade, orientação religiosa, qual a avaliação que faz da situação pela qual passa o país, no contexto social e político?
Avaliando a experiência do ano que está passando, aprendemos muito no âmbito da nossa comunidade para evitar que a pandemia se transformasse em pandemônio no nosso contexto social e político. Estivemos sempre ressaltando o esforço extraordinário e até compassivo de pessoas de boa vontade no acionamento incondicional da ciência e tecnologia a serviço do ser humano, o bom funcionamento das organizações públicas e o respeito às instituições democráticas na garantia dos direitos humanos e da própria natureza. Entretanto, o bem estimulado no próprio indivíduo, na família e na sociedade parece paliativo frente ao crescimento dos índices de insanidade mental, violência doméstica, carestia e desemprego. De um lado, procedimentos de arrogância, de ambição desmedida quanto aos interesses do poder e a própria ignorância na visão do mundo e na forma de pensar a vida, contrastaram com a simplicidade, humildade e generosidade do coração brasileiro, até da sua sabedoria. Por outro lado, sabemos que fatores históricos e estruturais do modo vigente de produção e de circulação resultam em mais concentração de renda, desigualdades sociais e violação de direitos humanos e naturais por causa da própria natureza do capital. Por exemplo, a relativa indiferença das nações desenvolvidas pela desigualdade e miséria que imperam na África é responsável pela difusão do vírus ômicron, um ser vivo mutante que sobrevive de várias formas para fazer o mal e que nos assusta como nova onda de medo e pânico que advém dos infectados europeus e asiáticos. E existe desigualdade crescente e contínuo estado de miséria, além do desemprego e problemas de nutrição em países em desenvolvimento como o nosso.
Qual o papel da religião e fé diante do que estamos vivendo?
Diante do que estamos vivendo, não só o papel da religião como do conjunto de pessoas imbuídas com a espiritualidade da boa vontade passam a ser importantes como nunca. Já me disseram que sou otimista-idealista, porque tanto a simplicidade, humildade e generosidade como o seu oposto, isto é, a arrogância, ambição e ignorância compõem o coração brasileiro. Por que não? Por isso que me tornei budista. Esse aprendizado provocado pela pandemia deve ser bem aprendido e absorvido, não basta expurgar os males ou distúrbios pessoais, provocados pelo vírus , também pelos sociais, políticos e econômicos, sem falar do estrago que estamos provocando na própria mãe-natureza que nos nutre e nos dispõe de tudo, a própria Terra. Lembremos que há males que vêm para o bem, ao passo que o que assumimos como bem material, em geral, bem-conforto, bem-comodidade ou bem-facilidade podem nos provocar mal estar, mais cedo ou mais tarde. Esclarecer isso é papel da espiritualidade, não só do budismo como de outras religiões e dos que não necessitam da crença religiosa mas munidos e munidas de boa vontade de amor, coragem e tenacidade.
De que forma a espiritualidade tem ajudado as pessoas a passarem por esse novo momento?
Muita gente acreditou que esse século seria de espiritualidade para melhor aproveitar o próprio avanço do modo de produção e de circulação de mercadorias, com a ajuda da tecnologia e da própria consciência individual acionada pela ciência e, por outro lado, a consciência social desenvolvida coletivamente pelo diálogo ético propiciado pelo funcionamento dialético verdadeiro da democracia. Prezo as leis como jurista e dou importância ao seu espírito ético e não à sua formalidade manipulável pela vontade dos homens, provocada por sectarismos de fanáticos e extremistas. Muitos da minha geração morreram decepcionados. Eu continuo vivo e acreditando no aqui e agora da vida eterna e luz infinita. Nunca na história chegamos a essa possibilidade de equilíbrio espiritual harmônico de várias dimensões do ser humano que progrediram rapidamente desde 1960, ou seja, mente/coração/espírito, amor egoísta/amor ao próximo/alma. Temos capacidade e potencialidade de integrar não só amor/coragem/tenacidade dentro da composição etária e cultural de jovens, adultos e idosos cuja complexidade é representada pela própria sigla LGBTQIA , ou seja, a liberdade de ser e viver da própria humanidade assumindo a diversidade.
É um momento de mudanças no templo, um tempo novo. Qual mensagem o senhor gostaria de deixar nesse momento de despedida?
Gostaria de repetir: fé, amor e esperança. Fé é sobre confiar na capacidade que o ser humano tem, por várias gerações, da sua evolução civilizatória. Ou seja, o ser humano não é o ser mais resistente, mais apto fisicamente. Mas nós resistimos e viemos evoluindo. Tanto é que inventamos a ciência, desenvolvemos a tecnologia e assim por diante. Então é sobre ter fé de que toda essa capacidade representa um avanço civilizatório. Amor porque o inter-relacionamento, no presente, entre seres, é importante. Não só entre o ser humano, e outros seres que sejam animais ou vegetais. Mas amor, especialmente entre os seres humanos, sem discriminação de credo, de etnia, de cultura. E também, finalmente, a esperança. Quanto a isso, a nossa ordem budista é do Shin Budismo da Terra Pura. Ou seja, que essa terra que vivemos se aproxima cada vez mais da Terra Pura, em que todos podem ser felizes igualmente. Então seria isso.