Em seus escritos, Clarice Lispector procurou desentranhar o mistério de seres e de coisas e nos empurrar para perto do coração. Esse traço provocou um equívoco: o de considerar que ela era uma mulher alienada das grandes questões sociais e dramáticas do Brasil. No entanto, ela sempre teve um agudo sentimento do mundo.
Quando era muito jovem e estudava direito, idealizou um projeto para reformar as penitenciárias. Mais tarde, em 1968, fotos mostram Clarice ao lado de Oscar Niemeyer, Glauce Rocha e Milton Nascimento na famosa passeata dos 100 mil que mobilizou os intelectuais do Rio de Janeiro para protestar contra a ditadura militar que se instalara. Além disso, se mobilizou para ajudar pessoas que eram perseguidas pelo regime.
Aquela virada das décadas de 1960 e 1970 forjou uma constelação de pessoas brilhantes. E uma delas era o cartunista mineiro Henfil. É inacreditável: com o simples traço de humor, ele influía sobre os acontecimentos. Tinha um instinto popular apurado e uma verve hilariante, o que ele inventava, pegava.
Basta lembrar que o apelido de torcida do urubu dado à nação rubronegra do Flamengo saiu das tirinhas que Henfil publicava no Jornal do Brasil.
Henfil inventou nas páginas de O Pasquim a série Cemitério dos Mortos-Vivos, na qual enterrava personalidades que simpatizavam, aderiam, se omitiam ou colaboravam com a ditadura. Por lá, passaram Pelé, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre e Rachel de Queiroz, entre outros. O dono do cemitério era o Caboco Mamadô, descrito em um desenho por Henfil, como “filho natural de Exu com Tony Tornado”.
Clarice ficou ofendidíssima quando se viu subterrada no jazigo da polêmica coluna. No recém-lançado A procura da própria coisa – Uma biografia de Clarice Lispector, Teresa Montero faz uma preciosa e minuciosa reconstituição do episódio. Acompanhemos o relato de Teresa. Na coluna do Henfil, o nome de Clarice é grafado com dois esses.
“Ara viva! Clarisse Lispector morta-viva!”. Um balão em cima da cabeça de Clarice dá voz à ela: “Estou chocada! Traumatizada com tanta agressividade contra esta pura e ingênua poeta! Que fiz para receber este pontapé do jovem humorista Henfil?” E o Cabôco comenta: “Êta ferro! O filho da D. Maria não tá livrando a cara nem dos intelectuais de centro...”
Na última tira, Clarice aparece numa redoma de vidro lavando as mãos, ao lado de pássaros e flores. E, em outra, o soldado crucifica Cristo. Clarice afirmou que, no início, ficou muito zangada, porque Henfil não a conhecia o bastante para saber o que pensava ou não. “Não estou isolada dos problemas. Fiquei meio aborrecida, mas depois passou. Se eu me encontrasse com ele, a única coisa que eu diria é: olha, quando você escrever sobre mim, Clarice, não é com dois esses, é com c, viu? Só isso que eu diria a ele. Mais nada.”
Muito tempo depois, em uma entrevista para o livro Furacão Elis, Henfil reconheceu que havia errado com relação a Clarice e a Élis. Acho que o Henfil foi mesmo injusto com Clarice e Elis. Mas a crítica social é necessária. Se fosse vivo, Henfil teria muitos candidatos a figurar em sua tirinha
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