Fiquei de prontidão para assistir ao documentário Lavra, dirigido por Lucas Bambozzi, no Canal Brasil, em cartaz pela mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Valeu a pena. Na verdade, o documentário sobre o desastre ambiental no território da mineração, em Mariana e em Brumadinho, parece um filme de ficção científica distópica, com as imagens apocalípticas e aterradoras da natureza destroçada.
A atriz Camila Motta, que conduz a narrativa, não é uma personagem neutra; ela mergulha de corpo inteiro na lama tóxica, na paisagem roubada, nos rios envenenados, na mitologia dos índios e nas vidas destroçadas, abalando a nossa indiferença olímpica.
Em Governador Valadares, os moradores fazem filas enormes para comprar água mineral, pois a dos rios é inadequada para o consumo humano; uma mulher afirma que os donos das grandes empresas diziam que abaixo da represa só existia mato ("então, nós somos bichos"); uma outra mulher conta que, com a chegada das mineradoras, aumentou a poluição dos rios, a dificuldade para cultivar plantas, a insegurança, os roubos e outras formas de violência.
A tragédia se delineia a partir dos depoimentos dos desvalidos, dos trabalhadores das empresas, dos sobreviventes da hecatombe, dos moradores vizinhos das sedes das empresas e dos que resistem ao projeto insustentável da mineração. Se revela pela voz dos que não têm voz e se mistura com a vida de cada habitante.
É significativo que o nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade, tenha empreendido uma batalha titânica contra a mineração predatória, com as armas que tinha: a crônica e a poesia. "Sempre se chamou a indústria da mineração de 'indústria ladra', porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto".
Lavra complementa, atualiza e amplia o trabalho de Drummond. Revela a lucidez e a clarividência com que o poeta antevia um futuro desolador. Não se trata de um acidente isolado. A mineração é um projeto que destrói todas as pontes com o futuro e leva ao abismo.
O filme lança um novo olhar sobre cenas que assolaram nossas retinas. A nossa cobertura jornalística tem sido muito burocrática ante a magnitude dessa catástrofe. Mariana e Brumadinho são tragédias concretas e, ao mesmo tempo, metáforas do Brasil. Fenômenos semelhantes ocorrem na Mata Atlântica, na Amazônia e no Cerrado. Se a flexibilização deu certo em Brumadinho e em Mariana por que não daria em outros lugares e em outras esferas da vida brasileira?
Camila traça uma cartografia pungente da trama de um projeto fadado ao colapso. Não é um filme panfletário; é serenamente indignado e, tragicamente, poético. Mas, por isso mesmo, nos atinge em cheio. Esse filme deveria ser visto, não na sessão coruja, mas em horário nobre para todos os brasileiros. É uma aula de civismo, que sensibiliza e convoca à ação. Em vez de punição, a Companhia Vale do Rio Doce ganhou um desconto no valor de 17 bilhões nas reparações que tinha de fazer em Brumadinho.
Paulo Emílio Sales Gomes criou a Semana do Cinema Brasileiro, matriz do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, entre outros objetivos, para que as autoridades instaladas na capital se conscientizassem sobre as grandes questões do país.
O filme é uma nova inconfidência mineira, em favor do Brasil. Saímos de dentro daquela lama tóxica, arrasados, no entanto, também fortalecidos pelo espírito de resistência dos mineiros para empreender uma luta contra esse projeto insustentável e insano.