Vladimir e
a academia
Severino Francisco
Enquanto o mundo explode, recebo a notícia surpreendente de que Vladimir Carvalho vai ingressar na Academia Brasiliense de Letras. Confesso que, durante muito tempo, fui avesso às academias, pois as via como espaços de politicagem e fogueira das vaidades. Mas, com a reabertura política, Ferreira Gullar, Ana Maria Machado, Nelson Pereira dos Santos, José Murilo de Carvalho, Zuenir Ventura, entre outros, entraram para a academia e relativizaram a minha resistência a essas instituições.
Vladimir já foi eleito, no entanto, mesmo assim, queria fazer sua defesa. Ele é, essencialmente, um cineasta. Mas, dentro do cineasta, existe um escultor e um escritor. Praticamente, foi alfabetizado com os livros de José Lins do Rego. Vladimir é de Itabaiana, na Paraíba, cidade vizinha de Pilar, onde nasceu Zé Lins.
Foi em Itabaiana que Zé Lins fez o curso primário, na primeira década do século passado, como interno do famoso Instituto Nossa Senhora do Carmo. Nos anos 1940, Seu Lula, pai de Vladimir, que era leitor voraz e tinha espírito arejado, lia para os filhos, depois do jantar, trechos dos livros de Zé Lins, principalmente do romance Doidinho, totalmente inspirado na experiência do escritor no colégio interno, verdadeira prisão para um menino de engenho criado em liberdade.
O pai de Vladimir intercalava a leitura com acréscimos do que teria testemunhado, porque, supostamente, havia sido colega do escritor na tal escola. Tinha a imaginação solta e fabulava descaradamente. Contava o episódio em que o menino Zé Lins fugia do colégio, ia até a estação da Great Western e voltava escondido no trem para a casa do avô no Pilar.
Mestre Lula era mais de 10 anos mais novo do que Zé Lins, portanto, não podia ter sido seu colega. Mas Lula era encantador e praticamente hipnotizava. Vladimir ouvia essas histórias embevecido; para ele, aquele menino inquieto e audacioso era um herói, sonhava com o garoto arteiro. Mais tarde, Vladimir filmaria O engenho de Zé Lins, sobre José Lins do Rego, e O homem de areia, sobre José Américo.
Em um festival, escreveram que Vladimir era parente de Lampião. Nada a ver, Vladimir é um cangaceiro das artes; é um cangaceiro sofisticado, estudou filosofia na efervescente Universidade da Bahia, dos anos 1960, onde fez amizade com Caetano Veloso, Glauber e Tom Zé, entre outros. Em vez do fuzil, empunha uma câmara ou uma máquina de escrever manual Remington.
Sugiro à academia brasiliense que a primeira homenagem a Vladimir seja reunir os artigos esparsos que publica em jornais. É uma escrita que tem um sabor, a um só tempo, arcaico e moderno, classicizante e coloquial, rascante e fluente, prosaico e épico, haurida na leitura dos romancistas nordestinos da década de 1930. Tem algo de José Lins do Rego, de José Américo de Almeida e de Graciliano Ramos.
Guardo, vivos, na memória, vários textos do Vladimir. É bela a crônica que ele publicou no livro Cinema candango – matéria de jornal, sobre a experiência tão brasiliana e tão hitchcokiana de ser perseguido por um pássaro no Parque da Cidade. Só lhe restou fugir em desabalada carreira e refugiar-se nos banheiros com azulejos de Athos Bulcão.
Não sei qual foi a intenção de Vladimir em candidatar-se a uma vaga da Academia Brasiliense de Letras. Mas posso assegurar que ele engrandece qualquer instituição por onde passa. O amor a Brasília não exclui uma visão contundente das mazelas da cidade. Para a academia, é como se um clube contratasse um craque. Vladimir merece todas as reverências. Como disse Cartola, quem gosta de homenagem depois de morto é estátua.