O Distrito Federal tem a maior taxa do Brasil de pacientes autorizados a importar produtos derivados do canabidiol (CBD) para uso medicinal. Na capital, a cada 100 mil habitantes, 35 estão no rol de concessões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O estado do Rio de Janeiro, segundo colocado da lista, tem quase metade do número do DF — 19. A média nacional é de nove autorizações a cada 100 mil brasileiros. Os números, obtidos pelo Correio, são da Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides (BRCann). No total, o Brasil ultrapassa a marca de 41,1 mil pessoas autorizadas a importar os itens, e o DF concentra 5% desse valor. Em termos populacionais, o Distrito Federal tem 1,45% dos habitantes do país.
A pesquisa da instituição — que reúne 19 empresas do mercado brasileiro especializadas no desenvolvimento, na produção e na distribuição de insumos e produtos à base de canabinoides para uso médico e veterinário — também aponta que o crescimento das autorizações da Anvisa para a importação excepcional desses itens tem sido exponencial nos últimos anos. A quantidade de concessões dadas somente entre janeiro e agosto de 2021 ultrapassou o número total de 2020: neste ano, são 19.145 emissões, contra 15.566 no ano passado — crescimento de 23%.
Tarso Araújo, diretor-executivo da BRCann, acredita que o boom das autorizações da Anvisa está ligado à diversificação de usos que a cannabis medicinal tem adquirido nos últimos tempos, com a expansão das pesquisas a respeito dos produtos. "Tem havido prescrições para mais indicações e expansão das faixas etárias dos pacientes. Até pouco tempo, CBD era sinônimo de tratar epilepsia em crianças. Agora, é para idosos e pessoas adultas, contra doenças como Alzheimer, Parkinson e ansiedade", observa o diretor.
Saiba Mais
Idades
Em 2019, a proporção de autorizações para pessoas acima de 65 anos superou a taxa de concessões para crianças de até 10 anos pela primeira vez desde 2015. Naquele ano, último registro da Anvisa com viés etário, os idosos representaram 23,6% dos novos pacientes, contra 20,8% pedidos atendidos para o público infantil. Shirley Pontes é gerontóloga em uma clínica especializada em tratamentos geriátricos e explica que os produtos usados são à base de cânhamo.
Para Shirley, a mudança de público não levou ao fim do atendimento a crianças. "Os idosos e adultos têm demandas reprimidas. Houve aumento da informação em relação às possibilidades de tratamento para síndromes que afetam pessoas mais velhas. São pacientes, por exemplo, com Parkinson, síndromes geriátricas, demência da idade e Alzheimer", explica Shirley, que fez uso do CBD como antidepressivo e, atualmente, utiliza para melhorar a qualidade do sono.
O filho de 8 anos da psicóloga Luciana Pontes, 40 anos, usa óleo de cannabis há mais de um ano. Luca foi diagnosticado com autismo em 2017 e, de lá para cá, a moradora da Asa Norte tentou outros métodos não convencionais com o menino. A indicação do uso da cannabis partiu do médico homeopático que acompanhava Luca, e a primeira receita médica para uso do CBD veio em novembro de 2019.
"O processo de autorização de importação com a Anvisa aconteceu de forma muito tranquila", relata a psicóloga, que possui a concessão desde o fim de 2019. No entanto, a emergência sanitária da covid-19 interrompeu o tratamento. "Usamos por meses, veio a pandemia e decidi não importar por questões financeiras. O dólar subiu muito e o frasco da medicação ficou muito mais caro", relembra a mãe, destacando as mudanças no comportamento do filho. "Houve melhora no sono, que era sempre muito agitado, e nos períodos de concentração. Ele é uma criança muito agitada e falante", observa Luciana.
Luca voltou a fazer o tratamento em setembro, mas, desta vez, o óleo usado contém todas as partes da cannabis, inclusive o tetrahidrocanabinol (THC), outra substância presente na cannabis. "A mudança foi muito significativa, mais ainda do que com o primeiro frasco. Usamos de duas a três vezes por dia, e ele fica mais agitado e irritado quando não toma, porque tem dificuldade em lidar com frustrações. Sou muito grata ao canabidiol, mudou nossa vida. Sou muito a favor dos tratamentos, o efeito é positivo e muito intenso", complementa a mãe.
Alternativa
A importação de produtos de CBD não é a única opção para quem precisa dos tratamentos com a substância. O advogado Gabriel Pietricovsky — que trabalha com o irmão João Pedro Pietricovsky exclusivamente com autorizações judiciais para cultivo da cannabis desde 2019 — conta que os argumentos em torno do pedido incluem a facilidade de a pessoa plantar e extrair o óleo artesanalmente. "A venda do CBD no Brasil é permitida e algumas farmácias oferecem com apresentação de receita médica. Mesmo quando a pessoa consegue a autorização de importação da Anvisa, ela não está autorizada a plantar. Quando há THC no produto, incorre em crime no Brasil. Na prática, quem é pobre vai preso e quem é rico, não", critica Gabriel.
Quanto ao número de autorizações judiciais do tipo no Brasil, o advogado esclarece que não há como saber a quantidade precisa. "Ninguém tem acesso a esses processos, apenas as próprias partes. A divulgação tem crescido agora, com os advogados mais confiantes para entrar com esses pedidos na Justiça", explica Gabriel. Segundo ele, com base nos casos divulgados pela mídia, houve, desde 2016, entre 300 e 350 habeas corpus no país. "Temos atualmente (no escritório) 28 autorizações judiciais por liminar para o cultivo próprio", complementa o advogado.
Paulo (nome fictício) foi um dos 10 pacientes beneficiados com a decisão inédita que permitiu, em junho deste ano, o cultivo de cannabis por meio da esfera cível. O jovem de 24 anos faz uso do tratamento contra ansiedade, depressão e insônia, agravadas pelo período de isolamento social ocasionado pela pandemia da covid-19. Paulo também tem autorização da Anvisa para a importação. A permissão de cultivo e a concessão da agência foram dadas ao jovem na mesma época e ele usa a substância por meio de óleos e vaporização. Paulo explica que o processo legal para obtenção do habeas corpus envolveu consultas médicas e avaliações com psicólogo e psiquiatra. "É preciso que seja recomendado para ser feito corretamente", acrescenta.
Hoje, o jovem alterna o uso entre compras importadas e cultivo em casa, com extração feita por ele mesmo. "Importo por uma questão de tempo, porque há demora para completar o ciclo da planta, mas é muito mais em conta cultivar em casa", explica. Com a aquisição dos equipamentos para o cultivo e extração caseira, o homem já gastou cerca de R$ 3,5 mil. Para importação, o frasco de óleo, que dura de 20 a 30 dias, pode custar entre R$ 1,6 mil e R$ 2 mil.
Opção
Adriana (nome fictício) também tem a permissão judicial para compra e cultivo da cannabis. A mulher de 34 anos possui um habeas corpus de cultivo caseiro há três meses. Ela usa a substância para tratar de endometriose grave. "Eu tinha muitas dores, não conseguia trabalhar direito por conta da dor. Usei diversos tratamentos convencionais sem eficácia, com anti-inflamatórios como Tramal, Buscopan e Torasegic. Sofria de cólicas, o que debilitava a qualidade da minha vida", relembra Adriana, que adquire a planta por meio de associação.
Ela insistiu em descobrir mais sobre os tratamentos devido ao apreço por medicina alternativa. "Fui atrás da tramitação (jurídica), das associações e de um advogado, que me orientou que poderíamos ter um habeas corpus definitivo com direito de uso e plantio", conta, acrescentando que cumpriu todos os passos do protocolo.
"Fiz consultas, procurei psiquiatra e psicólogo e mostrei laudos médicos de endometriose, inclusive de cirurgia que tinha feito", complementa. A paciente relata que o tratamento é o único que ela usou até hoje que não causou efeitos colaterais. Ela gasta, em média, R$ 200 mensais com os produtos.