SELVAGERIA NO TRÂNSITO

Cerrado precisa de 195 mil novas árvores para compensar 10 anos de poluição rodoviária

Com base em cálculo elaborado pelo Correio, última reportagem da série especial mostra por que políticas públicas precisam, urgentemente, passar pela diversificação dos modais de transporte

Se é assustador imaginar que 31.945 brasileiros morrem por ano no trânsito, o cenário fica ainda pior quando colocamos na conta o número de pessoas que sofrem consequências dos impactos provocados pelo setor de transportes no meio ambiente. Apenas na grande São Paulo, estima-se que 4 mil cidadãos morram por ano devido a problemas causados pela poluição do ar, com a inalação de material particulado fino emitido por ônibus à base de diesel, segundo revelado por estudo do Greenpeace.

No Distrito Federal, o setor de energia, que engloba os transportes, é responsável pela emissão de 58,4% dos gases de efeito estufa (GEE; leia Para saber mais), de acordo com a edição de 2021 do Inventário Federal de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros do Distrito Federal. Cerca de 70% das emissões vêm dos carros. 

Na última reportagem da série Selvageria no trânsito, o Correio mostra que, ao estipular metas para zerar o número de mortes nas vias, as políticas públicas precisam, obrigatoriamente, passar pela diversificação dos modais de transporte para diminuir a dependência do modelo rodoviário à base de combustíveis fósseis. Além disso, a reportagem apresenta mais um dado alarmante: para compensar os prejuízos de uma década, o Cerrado precisará de 195 mil novas árvores (leia abaixo).

Na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia, o recado passado pelas autoridades do campo ambiental e por líderes de Estado é que não há mais tempo a perder. Os gases de efeito estufa são os responsáveis pelo aumento da temperatura média do planeta, que pode causar, entre outras consequências, a elevação do nível do mar. Se a graduação continuar a subir na mesma velocidade, antes do fim do século, cidades como Rio de Janeiro e Recife estarão debaixo d’água.

Representantes de 195 nações foram a Paris, na França, em 2015, assinar um acordo para limitar a 2°C o aumento da temperatura da Terra até 2030. O Brasil fez parte dos países que assinaram o compromisso, mas os esforços tomados até o momento não são suficientes. Além do aumento do desmatamento ilegal, maior responsável pelas emissões de GEE, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) não quis fazer parte da aliança firmada na COP26 para se comprometer a eliminar, gradualmente, a produção de gás e petróleo, bem como acabar com uso dos combustíveis fósseis.

25,4 milhões toneladas
Quantidade de CO2 emitido pelo setor de transporte rodoviário no DF entre 2008 e 2019

195,6 mil
Quantidade de árvores que precisam ser plantadas no cerrado para compensar as emissões de uma década

Fontes: Inventário Federal de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros do Distrito Federal, 2021; e Calculadora de Emissões do Laboratório de Silvicultura Tropical da Universidade de São Paulo (USP)

Cenário distrital

Não existem estudos que evidenciem o impacto da qualidade do ar na saúde dos brasilienses, mas é possível afirmar que a poluição causa consequências. O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) monitora, desde 2005, a qualidade do ar na capital federal. A estação de captação mais antiga, instalada na Rodoviária do Plano Piloto, apresentou no último relatório anual, em 2019, a média de Índice de Qualidade do Ar (IQAR) de 55,71 microgramas de partículas presentes a cada metro cúbico de ar.

O nível é considerado moderado, mas pode provocar em pessoas sensíveis — como crianças, idosos e diagnosticados com doenças respiratórias — sintomas como tosse seca e cansaço. “Há poucas indústrias com potencial de poluição atmosférica no território do Distrito Federal, sendo os veículos os maiores responsáveis pelas emissões de poluentes”, informa o Ibram sobre o relatório.

O DF até tenta caminhar na direção contrária ao resto do país, mas encontra dificuldades. Antes da aprovação da Política Nacional sobre Mudança do Clima, em 2009, o Executivo local aprovou a Lei Distrital nº 4.136/2008, com medidas para retirar dióxido de carbono da atmosfera. Alguns dos destaques da norma são a promoção de energias renováveis e a substituição gradual dos combustíveis fósseis por alternativas menos poluentes.

Mas a legislação não parece fazer tanta diferença na prática. Em 2017, o governo distrital entregou os nove primeiros ônibus abastecidos a biodiesel. No ano seguinte, em reportagem do Correio, a Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) informou que a expectativa era tornar toda a frota de ônibus movida a biocombustível até 2019. Porém, depois disso, não houve novas entregas de coletivos nesse formato.

Em 2018, começou a circular o primeiro ônibus que funcionava à base de energia elétrica. O veículo fazia o trajeto Rodoviária do Plano Piloto—Esplanada dos Ministérios. Desde então, a Semob disponibilizou mais cinco coletivos elétricos. Atualmente, os seis veículos fazem rotas pela Esplanada. A pasta informou que a ampliação das duas frotas (elétrica e biodiesel) está prevista para a próxima licitação, que não teve data divulgada.

Entre 2005 e 2018, o gás carbônico emitido na atmosfera pelo setor rodoviário aumentou 26,23%. E o Executivo local acredita que o número poderia ser maior, pois, no mesmo intervalo, a quantidade de veículos em circulação no DF aumentou em 119%. “As emissões de CO2 só não foram maiores pelo uso de biocombustíveis, em especial, do etanol nos automóveis, além do biodiesel em ônibus e caminhões. O uso de biocombustíveis apresentou crescimento de 101,75% no período e representou 12,33% das emissões evitadas no setor de transporte rodoviário em 2005 e 19,89% em 2018”, informa a Secretária de Meio Ambiente do Distrito Federal.

Ainda assim, o DF está em marcha lenta na transição para um esquema de transporte coletivo e público de qualidade. Além da demora para mudar as matrizes de energia dos ônibus, a linha metroviária da capital federal atende apenas seis regiões administrativas. E o metrô é uma opção bem menos poluente — em 2018, emitiu 19 mil de toneladas de CO2, apenas 0,7% do total do setor rodoviário.

Cigarro sobre rodas

Durante a apresentação de um relatório na COP26, representantes de 40 organizações internacionais destacaram que o investimento em transportes coletivos é essencial para reduzir as emissões de poluentes na atmosfera. Nas duas últimas décadas, a expansão dos BRTs chegou a 853% no mundo, tendo destaque nos países desenvolvidos.

No Distrito Federal, apenas 5% da frota de transporte rodoviário é alimentada por biocombustíveis, mesmo com o Brasil na posição de segundo maior produtor de etanol do mundo. O principal motivo é o preço: o tributo no DF é o nono mais alto do país, o que torna esse tipo de produto mais caro em Brasília.

Apesar disso, um estudo do Greenpeace e do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS) evidenciou que não basta fazer investimento em transporte coletivo se não houver mudança na matriz energética. O trabalho diz que os 15 mil ônibus em circulação na grande São Paulo e à base de óleo diesel causarão a morte de 178 mil pessoas até 2050, além de 189 mil internações, que custarão cerca de R$ 634 milhões aos cofres públicos.

“Os ônibus a diesel são como cigarros sobre rodas, poluem o ar tanto quanto o fumo que foi proibido em locais públicos fechados. Uma hora de exposição ao trânsito equivale a fumar um cigarro”, explica a médica Evangelina Vormittag, diretora do ISS e uma das coordenadoras do estudo.

E, mesmo como uma opção de menor impacto do que a gasolina e o diesel, os biocombustíveis não são considerados uma matriz de transporte limpa. “Eles não são um modelo sustentável, pois a produção é baseada na monocultura, com grande uso de agrotóxico e impacto em lençóis freáticos. Mas são vistos como parte de uma solução focada na diversidade de modais e são melhores do que os combustíveis fósseis”, explica Marcelo Laterman, porta-voz da campanha de Clima e Justiça do Greenpeace e mestre em ciências ambientais e energia pela Universidade de Copenhagen, na Dinamarca.

Em nível global, o principal investimento é na eletrificação dos transportes, que passa por sistemas metroviários e carros elétricos. No DF, menos de 0,5% dos carros são movidos a eletricidade. A principal causa é o preço dos veículos, que sai, em média, por R$ 200 mil. No Brasil, o empecilho avanço do setor é a atual crise hídrica, que pode afetar a distribuição de energia em diversas regiões do país.

Com a bateria completa, um automóvel elétrico pode circular até 150 quilômetros e demora, em média, nove horas para ficar totalmente carregado quando plugado a uma tomada convencional. Cada R$ 100 usados como gasolina representam, aproximadamente, R$ 30 de aumento na conta de energia. Por isso, Marcelo Laterman destaca a necessidade de superar a dependência de hidrelétricas e termelétricas. “Em Santa Catarina, um projeto universitário instalou sistemas fotovoltaicos nas garagens dos ônibus, para captar energia do sol e recarregar os veículos durante a noite. É um exemplo que pode ser seguido em todo país”, considera.

Para saber mais

Componentes

Os principais gases de efeito estufa são o metano (CH4), o óxido nitroso (N2O), o ozônio (O3), halocarbonos, o vapor d’água e o gás carbônico (CO2). Este último representa, sozinho, 90% dos GEE presentes na atmosfera. Essa emissão começou a subir a partir da queima de combustíveis fósseis no século 17, durante a Revolução Industrial.