"Eu já cantei no Recife/Na porta do pronto-socorro/Ganhei quinhentos mil reais/Comprei duzentos cachorros/Morri no ano passado/Mas este ano não morro". Emicida citou e atribuiu os versos acima mencionados a Belchior na faixa AmarElo, que já alcançou mais de 10 milhões de visualizações no YouTube, e várias pessoas repetiram o equívoco. Falo de cátedra porque também incorri no mesmo erro. Ouvi pela primeira vez o poema em um disco de Belchior na década de 1970. Fiquei fascinado pelo relâmpago surreal da poesia. Mas o verdadeiro autor é Zé Limeira, não Belchior.
Ao me dar conta do deslize, empreendi uma caçada implacável ao livro Zé Limeira, o poeta do absurdo. Tudo em vão, naquela época não havia esta facilidade de acionar um botão Google e receber todas as informações instantaneamente. Mas eis que o destino tramou uma inesperada conexão entre o vate alucinado e Brasília: o jornalista, escritor e boêmio paraibano Orlando Tejo, o autor de Zé Limeira, o poeta do absurdo, em carne e osso (mais osso do que carne), veio trabalhar na redação do Correio na década de 1980.
Tejo me brindou com um exemplar da obra, que, em vez de apaziguar, atiçou ainda mais a minha curiosidade. Lá, pude garimpar alguns obras-primas do nonsense: "Zé Limeira quando canta/Estremece o Cariri/Galinha cisca pra frente/Leão chupa abacaxi/Com três dias depois/Estoura a guerra civi". Um pesquisador francês da Sorbonne, chamado Chantal, organizou uma antologia internacional do nonsense e, segundo ele, Zé Limeira é um dos maiores poetas do gênero no mundo.
Realmente, Zé Limeira parece um Mané Garrincha da poesia popular, aplicando dribles desequilibrantes no que aparecesse pela frente; a lógica, o previsível, o tempo, as leis da física e o bom senso: "Um sujeito chegou ao cais do porto/E pediu emprego de alfaiate/Misturou cinturão com abacate/E depois descobriu que estava morto/Ligou rádio no focinho de um porco/E afogou-se em um chá de erva cidreira/Requereu o diploma de parteira/E tocou em uma ópera de sinos/Eram mãos de 50 mil meninos/E não sei quantos pés de bananeira".
Se os cantadores de feira do Nordeste já se entregavam a voos surrealistas, Zé Limeira acelerou as asas do absurdo, para revirar a lógica pelo avesso e mostrar que, às vezes, dois e dois ser igual a cinco pode ser uma coisinha muito interessante, como diz um personagem de Dostoiévski. O Zé Limeira delineado por Tejo parece um ser tão fantástico quanto os versos disparatados do poeta.
Nascido em 1886, na Serra da Borborema, na Paraíba, era um caboclo de estatura avantajada, desabusado e delirante. Trajava roupas espalhafatosas, óculos de lentes pretas exageradas, lenço colorido no pescoço, quinze anéis grotescos nos dedos e dezenas de fitas multicoloridas na viola. Trazia sempre engatilhado na língua um verso surreal, desconcertando completamente os adversários.
Conversei com vários cantadores e eles me disseram que, de fato, Zé Limeira existiu, mas, ao mesmo tempo, é uma construção coletiva. Muitos repentistas talentosos inventaram versos no estilo Zé Limeira e incorporaram ao acervo do poeta paraibano. A Tejo não faltou verve para pintar o personagem com tintas bem fortes da imaginação.
Mas, não importa se inventado ou real. Zé Limeira sobrevive ao tempo com os seus versos desconcertantes: "Eu me chamo Zé Limeira/Cantador que não é pilhérico/Mas já sofreu de alguns males/Foi atacado de histérico/Chame logo a junta médica/Faça o exame cadavérico".