Sobreviver aos deslocamentos diários pelas cidades é um desafio para milhares de pessoas no planeta. E, caso os governos e a sociedade civil continuem a ignorar a pandemia de mortes no trânsito, até 2030, elas se tornarão a quinta maior causa de óbitos prematuros, superando as provocadas pela Aids, por cânceres, pela tuberculose e pela violência, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Na primeira reportagem da série Selvageria no trânsito, o Correio contextualizou os cenários mundial, brasileiro e local das mortes no trânsito, além dos custos e dos impactos desses registros para a vida das pessoas e para o Estado. Nesta edição, nossa equipe propõe uma reflexão: quantas mortes no trânsito você considera admissíveis?
Na Suécia, por exemplo, a resposta é "nenhuma". No fim da década de 1990, enquanto o Congresso Nacional aprovava o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o país europeu lançava o programa Visão Zero, cuja premissa era zerar as mortes nas vias e a quantidade de vítimas com ferimentos graves em decorrência de sinistros nas estradas. Passados quase 25 anos, a nação se tornou uma das mais seguras do mundo nesse sentido (leia Para saber mais).
A proposta não desconsidera a impossibilidade de evitar todas as ocorrências de trânsito em um país. Contudo, priorizar vidas fez a Suécia estabelecer dois objetivos principais para os anos de 2007 a 2020: reduzir à metade o número de mortes nas pistas e em um quarto a quantidade de pessoas gravemente feridas. Para garantir o resultado, o total de óbitos no ano passado não poderia ultrapassar 220, e o número de vítimas machucadas no período deveria ser inferior a 4,1 mil. Os resultados ficaram bem abaixo do esperado. O governo contabilizou 161 ocorrências fatais e 1.645 pessoas lesionadas.
Apesar das discrepâncias econômicas e sociais entre o Brasil e a Suécia, é possível, sim, criar políticas que tornem o ir e vir dos cidadãos mais seguros e sustentáveis. Por aqui, a iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global trabalha de forma integrada com a sociedade civil, o poder público e a iniciativa privada para entender a realidade do país e propor soluções de traçados urbanos ou espaços públicos com mais vitalidade, bem como deslocamentos guiados pela sustentabilidade, segurança e por tecnologias limpas.
Um dos projetos de destaque no país fica em Fortaleza. Lá, os avanços ocorreram não só pelo incentivo à mobilidade ativa como, também, pelo investimento em modais urbanos de massa. "É a cidade brasileira onde 50% da população vive a até 300 metros da infraestrutura cicloviária. Isso é, de fato, um incentivo para que as pessoas façam os deslocamentos de bicicleta. Além do investimento em transporte de massa", afirma Dante Rosado, coordenador do projeto da Bloomberg no Brasil.
O especialista entende estar consolidada entre os gestores a necessidade de priorizar o transporte público coletivo. Porém, a redução de velocidade nas pistas e a dependência do automóvel para deslocamentos ainda são um tabu. "A cidade pensada para as pessoas não é mais cara do que as cidades pensadas para os automóveis. Não é caro colocar uma faixa exclusiva para os veículos de massa, fazer ciclofaixas ou construir calçadas para pedestres. É uma decisão política", defende.
Na avaliação do coordenador, primeiro, é preciso fazer com que a sociedade entenda o tamanho do problema. O processo envolve repensar a forma como é tratada a mobilidade urbana e fazer com que a prioridade sejam as pessoas em vez das máquinas. "Precisamos continuar a educar condutores e a fiscalizar para que a sociedade adote um comportamento seguro. Para isso, os governos precisam criar mecanismos que impeçam os motoristas de cometer infrações, que matem e morram no trânsito", pontua Dante.
Requalificação
Patrimônio Cultural da Humanidade, Brasília se consolidou como ícone pela arquitetura moderna e pelo traçado das ruas. Apesar disso, carrega no DNA a lógica rodoviarista predominante nas décadas de 1950 e 1960, quando o presidente Juscelino Kubitschek trabalhava para impulsionar a indústria automobilística e a interiorização do país por meio da ampliação da malha rodoviária.
Sessenta anos depois, a cidade vive as consequências de ter uma infraestrutura pensada, majoritariamente, para veículos. Os impactos desse modelo se revelam em números assustadores de feridos e mortos nas vias. As iniciativas na direção de mudar esse cenário se mostram incipientes, pois necessitam de um projeto global, integrado com diferentes órgãos do governo e, acima de tudo, apartidário e de longo prazo.
Uma das iniciativas mais recentes desenvolvidas na capital federal foi a requalificação do espaço público no Setor Hospitalar Local Sul (SHLS), onde funciona uma Zona 30 — áreas com velocidade máxima de 30km/h. Na semana passada, a reportagem visitou a região para ouvir pedestres e motoristas sobre os efeitos da medida. De modo geral, há pouco conhecimento entre a população sobre o motivo e o objetivo da mudança.
O taxista Waldecy Bezerra, 73 anos, atua em um ponto no SHLS. Morador da Candangolândia, ele detalhou o que viu de novo após a criação da Zona 30 no bairro do Plano Piloto: "Antes, era impossível andar aqui, tanto de carro quanto a pé. Era cheio de buracos, a visibilidade era ruim, e o engarrafamento ultrapassava a área do setor. Agora, está mais limpo, amplo, seguro e bonito. E tudo nos faz reduzir a velocidade. Sabemos que não adianta correr porque, logo à frente, haverá um quebra-mola".
A outra Zona 30 do Distrito Federal também fica no Plano Piloto. Mais especificamente, na Universidade de Brasília (UnB), onde passou a valer em março de 2020. O decreto distrital que institui o modelo entrou em vigor quatro meses depois, com proposta de estimular o uso dos espaços públicos e dos meios de transporte não motorizados.
Ao passar pela Zona 30 do Setor Hospitalar, a arquiteta Cristiane Deporte, 49, observou que, do ponto de vista dos motoristas, houve melhorias. Para outros grupos, porém, a iniciativa deixou a desejar. "Não vejo veículos passarem em alta velocidade, pois a pista é estreita, e a visibilidade parece boa. Mas, quando nos voltamos para as necessidades de quem usa as calçadas, há problemas. Entre os estacionamentos e a rua, há um canteiro que impede a passagem de pessoas. É preciso atravessar pelo local de saída e entrada de carros, o que é arriscado. Além disso, há desníveis, e cadeirantes ou pessoas com dificuldade de locomoção podem ter dificuldade (para circular)", destaca.